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TEMA LIVRE : Valéria Del Cueto
Galinha morta
12/08/2012
Não andou de diligência, mas passeou de carroça e trem com banco de madeira. Atravessou São Paulo de Bauru a Campo Grande, desembarcou em Aquidauana e tomou trecho de estradas sem asfalto até Ponta Porã. Imagine cair em Pedro Juan Caballero: dois países e uma linha, mulheres de calça comprida e saias por cima. E o guarani. No espanhol se comunicou rapidinho, mas o guarani era uma atração. Na vila militar o monte de regras era uma continuação da terra vermelha sem asfalto, as vacas pastando no campo de polo depois de aperitivarem as rosas dos jardins da mãe, por cima do muro ou entrando no quintal pelo portão que algum desavisado deixou só encostado.
Vacas não fazem parte da fauna familiar. Cachorro, o Quarup, e coelho fazem, além dos animais minúsculos como grilos, besouros e louva-deuses que a irmã, que quer ser entomologista, usualmente carrega nos bolsos dos casacos. Lembra perfeitamente de um de lã vermelha com a bicharada ressecada depositada no fundo do bolsinho.
Foi lá que aprendeu a andar nos muros. Era mais prático que fazer o caminho normal. Passar pelos portões, contornar o quarteirão. Era por eles, os portões mais baixos, o ponto ideal para alcançar os altos dos muros laterais e seguir pela via aérea, de vez em quando beirando o telhado de uma churrasqueira e evitando as passagens acrobáticas por entre as árvores debruçadas sobre os paredões, normalmente mangueiras (fácil), laranjeiras e limoeiros (com espinhos), amoreiras (queimaduras de marandruvás) e bananeiras (formigas).
O problema era não matar a vizinhança de susto. Já bastavam as brigas quando a galinha do vizinho resolvia ciscar no quintal alheio e por lá batia as botas, sendo encontrada por uma das crianças, meio comida pelo cachorro da terceira casa.
Difícil o alheio explicar para o enfurecido ex-dono do galináceo que não foi o meigo Quarup o responsável pelo assassinato, nem o mesmo foi premeditado, sem amplificar o caso da mordida e dedurar diretamente o cachorro feroz da terceira casa. Afinal se o cão se parece com o dono o que esperar? O truque era estar preparado para pular para o terreno do lado oposto em caso de um avanço traiçoeiro do cachorrão que já latia como se não houvesse uma miríade de felinos passantes pelo local. Nas brincadeiras de polícia e ladrão saber o percurso dos muros era uma vantagem e tanto.
Saber subir em árvores também. O pé de cinamomo que o diga. Incrível como os perseguidores nunca olham para o alto quando procuram suas vítimas. Também é um ótimo elemento surpresa em emboscadas. Foi lá, nessas brincadeiras que aprendeu que se misturar é essencial. Nada só de meninos ou meninas, filhos de militares ou “civis”, brasileiros ou paraguaios, ricos ou pobres. O segredo é o “e”: meninas e meninos, civis e militares, brasileiros e paraguaios. E! E. E..., e?
Aprendia a ser paraguaio de pequeno, paraguaio do interior, diga-se de passagem. Quando era criança entendia um pouco o guarani. Hoje, nem isso. Mas não deixou de ser leal ao povo que tão bem o acolheu. Foi quando começou pelo começo a entender o pensamento do paraguaio e, para isso, a primeira regra é não pensar como brasileiro.
Mudar o foco e, radicalmente, seu ponto de vista. Eles não são o que pensamos ou queremos que sejam. Têm sua história, uma linda e, em alguns momentos, triste trajetória. Não têm porque nos olharem com quem olha seus salvadores. Somos seus algozes, sempre, até que provemos o contrário. E quem se arrisca a isso? Contra a realidade, não há argumentos.
O que para nós é golpe, com reflexos diplomáticos e internacionais, que dão brecha para o Mercosul abraçar o bolivarianismo venezuelano, para eles é uma questão de sobrevivência. Temos que ter em mente que é a história deles e que eles a farão como podem e acham que devem. Que a energia de Itaipu deve reverter em benefícios para a população paraguaia é fato. Lugo reivindicou isso e os preços de aviltantes passaram a módicos. O novo presidente faz a mesma coisa. Por que afinal, o Paraguai deveria aceitar passivamente o papel de galinha morta do quintal alheio?
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*Valéria del Cueto é jornalista, cineasta, gestora de carnaval e porta-estandarte do Saite Bão. Esta crônica faz parte da série “Ponta do Leme” do SEM FIM. delcueto.cia@gmail.com
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