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TEMA LIVRE : Valéria Del Cueto
Deu xabu, mas a crônica acabou saindo
04/11/2012
Chegar à praia e descobrir que esqueceu a canga, base para montar seu acampamento solar é quase igual a esquecer em casa o passaporte e só descobrir no aeroporto, na hora de embarcar.
Como querer sacar dinheiro no banco sem o cartão eletrônico. Pular de paraquedas sem o meio de transporte adequado. Participar de prova de hipismo sem o animal que dá nome ao esporte. Praticar tiro ao alvo, mas faltar a arma, de fogo ou branca.
Um retorno à base era impensável. O tempo urgia, o sol chamava e a preguiça rugia. Transformou o vestidinho numa pequena ilha evasê e ali se aboletou, largando na areia a bolsa e dela sacando o caderninho e a caneta. Era isso ou adeus à crônica.
A ordem era desordenar a rotina e antecipar o material. A periodicidade seria alterada por conta do feriado. De dominical, esta seria uma edição sabadal, sabadense e sabática.
Explique esses pequenos detalhes para a sua inspiração, caro editor. Por que para ela, a musa que a guiava, hoje não era dia de pensar, sugerir ou intervir.
O dia seria amanhã. Hoje com amanhã não orna. Entre outras razões por motivos bancários, vejam só que prosaico. Inspiração e banco não se entendem, e, raramente combinam. Diante das circunstâncias até ela foi obrigada a concordar com a justa reclamação do setor bancário. Era o dia dele.
A inspiração não achou muita graça por levar a culpa involuntária destes acontecimentos. Afinal, que responsabilidade tinha se sexta feira seria feriado? Como poderia aceitar de bom grado ser requisitada, recrutada e intimada a comparecer fora do dia semanal contratado e, mais importante e decisivo, em pleno 31 de outubro, Dia das Bruxas no hemisfério norte e, portanto, para os não iniciados, no mundo inteiro? É muita audácia.
Audácia e falta de noção. Do perigo, inclusive. E não se engane. Não é por estar na Ponta do Leme, em pleno Rio de Janeiro, numa tarde ensolarada de primavera, ouvindo as ondas quebrarem tão preguiçosas quanto ela, sem seu metro e meio quadrado de canga, que é possível sentir-se imune aos perigos abaixo mencionados. Bruxaria, magia, energia.
Mesmo as melhores e mais bem intencionadas feitiçarias devem ser usadas de forma parcimoniosa seguindo os devidos rituais.
Isso se aprende em Florianópolis, Santa Cataria, que, não por acaso, tem o codinome de Ilha da Magia, e é um entre outros pontos de contato entre os mundos paralelos da realidade e da mágica.
Há que respeitar e reverenciar os desígnios caprichosos da inspiração argumentava a pobre cronista procurando “pescar” um bom assunto.
Quem já perdeu a musa sabe disso. E se ela exige o sacrifício do conforto espacial, que assim o seja. A canga, pendurada abandonada solitária na janela do apartamento, fica fora de cena e o vestido assume o papel de micro ilha nas areias quentes da praia.
A inspiração bondosa e companheira, finalmente concede o sopro de sua graça. Mas, por seus estimados e valorizados serviços, cobra um alto preço da cronista necessitada de seus préstimos.
Por reverência, ao imobiliza-se no exíguo espaço literário, ciente de que qualquer movimento pode romper o fio que a liga com a musa, deixa as costas imobilizadas pelo tempo em que redige, provocando uma entorse que durará todo o feriado.
Deu xabu, mas a crônica saiu. O relaxante muscular que virá mais tarde é um preço justo pela inestimável contribuição.
...
*Valéria del Cueto é jornalista, cineasta, gestora de carnaval e porta-estandarte do Saite Bão. Esta crônica faz parte da série “Ponta do Leme” do SEM FIM. delcueto.cia@gmail.com
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