capa | atento olhar | busca | de última! | dia-a-dia | entrevista | falooouu
guia oficial do puxa-saco | hoje na história | loterias | mamãe, óia eu aqui | mt cards
poemas & sonetos | releitura | sabor da terra | sbornianews | vi@ email
 
Cuiabá MT, 05/10/2024
comTEXTO | críticas construtivas | curto & grosso | o outro lado da notícia | tá ligado? | tema livre 30.782.636 pageviews  

Hoje na História Saiba tudo que aconteceu na data de hoje.

TEMA LIVRE : Xico Graziano

Outras colunas do Tema Livre

Caos fundiário
02/04/2013

Excelente reportagem de Roldão Arruda, publicada no Estado tempos atrás, indica algo impossível no cadastro de terras do País: o somatório de área dos imóveis rurais ultrapassa em 600 mil quilômetros quadrados a própria superfície do território nacional. A falha é escandalosa e o assunto, antigo.

Dele tratei ao apresentar, em 1989, minha tese, intitulada A Verdade da Terra, de doutorado em Administração na FGV-SP. Nela mostrei, modestamente, haver um resíduo sujo nas estatísticas agrárias do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Em outubro de 1985, o governo liderado por José Sarney acabara de lançar o Plano Nacional de Reforma Agrária, estabelecendo uma meta de beneficiar, em 15 anos, um contingente de 7,1 milhões de famílias, das quais 1,4 milhão receberia seu pedaço de terra até 1989. A empreitada exigia ousadia total. Reconquistada a democracia, porém, tudo parecia ser possível.

O ponto de partida para o assentamento rural prometido residia no fabuloso estoque de terras dominado pelos latifúndios. Estimava-se no Incra que metade do território nacional, cerca de 410 milhões de hectares, estava ociosa. Terra de exploração que se transformaria em terra de trabalho, assim dizia o mais famoso slogan agrarista. Espetáculo da ilusão agrarista.

Deu, óbvio, tudo errado. Ao final do governo Sarney, desapropriados mesmo haviam sido apenas cerca de 8 milhões de hectares, distribuídos entre pouco mais de 50 mil famílias. Centenas de processos dependiam de trâmites burocráticos ou judiciais. Porém, ainda que todas as pendências fossem de pronto resolvidas, menos de 1% da meta de assentamentos teria sido atingida. Fracassara redondamente a reforma agrária da Nova República.

O fiasco foi creditado às forças conservadoras, comandadas pelos latifundiários. Participante ativo desse processo, como membro da equipe dirigente do Incra, em Brasília, não me convenci facilmente de tal argumento. Julguei que as objeções políticas haviam sido superestimadas na explicação do ocorrido. O buraco estava mais embaixo.

Minha tese, que virou livro (A Tragédia da Terra, 1991), mostrou serem equivocadas as estatísticas cadastrais do Incra. Inexistia, na verdade, aquele fantástico volume de terras a serem desapropriadas. Tratavam-se, isso sim, de enormes áreas que, embora oficialmente declaradas ao órgão oficial, raramente eram localizadas na realidade. Denominei tais imóveis de "latifúndios fantasmas": amedrontavam a sociedade, mas só valiam no papel.

Tudo indicava ser a grilagem de terras responsável pelos enganos. Áreas extensas eram registradas com documentação precária, para depois facilitar a sua venda. Noutros casos, antigas possessões haviam sido regularizadas, divididas, capitalizadas, mas permaneciam cadastradas como originalmente estavam. Não se limpava o cadastro original. Em meu trabalho acadêmico destaquei várias dessas áreas, com sua localização e seu tamanho. Somente no Estado de São Paulo identifiquei 11 "latifúndios fantasmas", jamais encontrados nas vistorias in loco. O caos fundiário era certamente mais grave nas demais regiões do País, menos estabelecidas burocraticamente.

Essa é a razão por que ainda hoje, conforme descobriu o jornalista Roldão Arruda, em 1.354 municípios brasileiros as terras cadastradas no Incra superam sua área territorial. Ladário, em Mato Grosso do Sul, puxa a lista da incongruência fundiária: a soma de seus imóveis rurais ultrapassa dez vezes a superfície municipal. Nem mágica explica.

Minha conclusão, formulada há 25 anos, foi chocante: as estatísticas enganadoras do Incra permitiram fabricar uma ilusão - ainda persistente na sociedade - de que seria fácil fazer a reforma agrária, bastando "vontade política" para executá-la.

Quando publiquei minha tese de doutorado, que repercutiu em entrevista nas páginas amarelas da revista Veja, a esquerda dogmática expulsou-me de sua turma. Tecnicamente, os entendidos pouco discordavam de mim. Mas achavam que, inoportunamente, eu dera munição à famigerada "direita". Alguns me acusaram de capitular ante o latifúndio. Bobagem.

Eu simplesmente defendia, como até hoje o faço, a ideia de que a modernização capitalista da agricultura exigia uma reorientação nas ideias agrárias herdadas do passado colonialista, que cultivavam a utopia socialista. Nada de permanecer, como Dom Quixote, lutando contra quimeras. Cazuza cantava: "A tua piscina está cheia de ratos/ tuas ideias não correspondem aos fatos" (em O Tempo não Para).

Muito se fez, desde então, para aprimorar o sistema cadastral do Incra. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, medidas saneadoras - legislativas, jurídicas e administrativas - conseguiram deletar cerca de 90 milhões de hectares, comprovadamente grilados, especialmente no Norte. Mas nunca, verdadeiramente, o Incra enfrentou esse problema pra valer. Por motivos, lamentavelmente, ideológicos.

Trazer credibilidade ao cadastro fundiário do País pressupõe modernizar o Incra. Carcomido pela velha ideologia, aparelhado por grupelhos políticos, tornou-se palco de disputas entre grupelhos, afugentando o profissionalismo que o projetou. Tornou-se burocratizado, lento. Os agricultores que o digam: um simples registro dos limites geográficos da fazenda, referenciados por satélite, demora anos para ser concedido. Fora as notícias sobre propinas, que todos conhecem, mas receiam denunciar, temendo ser retaliados pelas mãos dos invasores de terras.

Chegou a hora da verdade para o Incra. A histórica instituição não se pode contentar com essa inoperância, caindo em descrédito por nem saber sequer quanto de terra o Brasil possui. Ou redescobre sua função, empurrando a modernidade no campo, ou fecha as portas.


...

*Agrônomo, foi secretário de Agricultura e secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. E-mail: xicograziano@terra.com.br.


OUTRAS COLUNAS
André Pozetti
Antonio Copriva
Antonio de Souza
Archimedes Lima Neto
Cecília Capparelli
César Miranda
Chaparral
Coluna do Arquimedes
Coluna do Bebeto
EDITORIAL DO ESTADÃO
Edson Miranda*
Eduardo Mahon
Fausto Matto Grosso
Gabriel Novis Neves
Gilda Balbino
Haroldo Assunção
Ivy Menon
João Vieira
Kamarada Mederovsk
Kamil Hussein Fares
Kleber Lima
Léo Medeiros
Leonardo Boff
Luciano Jóia
Lúcio Flávio Pinto
Luzinete Mª Figueiredo da Silva
Marcelo Alonso Lemes
Maria Amélia Chaves*
Marli Gonçalves
Montezuma Cruz
Paulo Corrêa de Oliveira
Pedro Novis Neves
Pedro Paulo Lomba
Pedro Pedrossian
Portugal & Arredores
Pra Seu Governo
Roberto Boaventura da Silva Sá
Rodrigo Monteiro
Ronaldo de Castro
Rozeno Costa
Sebastião Carlos Gomes de Carvalho
Serafim Praia Grande
Sérgio Luiz Fernandes
Sérgio Rubens da Silva
Sérgio Rubens da Silva
Talvani Guedes da Fonseca
Trovas apostólicas
Valéria Del Cueto
Wagner Malheiros
Xico Graziano

  

Compartilhe: twitter delicious Windows Live MySpace facebook Google digg

  Textos anteriores
26/12/2020 - MARLI (Marli Gonçalves)
21/12/2020 - ARQUIMEDES (Coluna do Arquimedes)
20/12/2020 - IDH E FELICIDADE, NADA A COMEMORAR (Fausto Matto Grosso)
19/12/2020 - 2021, O ANO QUE TANTO DESEJAMOS (Marli Gonçalves)
28/11/2020 - OS MEDOS DE DEZEMBRO (Marli Gonçalves)
26/11/2020 - O voto e o veto (Valéria Del Cueto)
23/11/2020 - Exemplo aos vizinhos (Coluna do Arquimedes)
22/11/2020 - REVENDO O FUTURO (Fausto Matto Grosso)
21/11/2020 - A INCRÍVEL MARCHA DA INSENSATEZ (Marli Gonçalves)
15/11/2020 - A hora da onça (Coluna do Arquimedes)
14/11/2020 - O PAÍS PRECISA DE VOCÊ. E É AGORA (Marli Gonçalves)
11/11/2020 - Ocaso e o caso (Valéria Del Cueto)
09/11/2020 - Onde anda a decência? (Coluna do Arquimedes)
07/11/2020 - Se os carros falassem (Marli Gonçalves)
05/11/2020 - CÂMARAS MUNICIPAIS REPUBLICANAS (Fausto Matto Grosso)
02/11/2020 - Emburrecendo a juventude! (Coluna do Arquimedes)
31/10/2020 - MARLI (Marli Gonçalves)
31/10/2020 - As nossas reais alucinações (Marli Gonçalves)
31/10/2020 - PREFEITOS: GERENTES OU LÍDERES? (Fausto Matto Grosso)
26/10/2020 - Vote Merecimento! (Coluna do Arquimedes)

Listar todos os textos
 
Editor: Marcos Antonio Moreira
Diretora Executiva: Kelen Marques