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TEMA LIVRE : Valéria Del Cueto
Vai de que?
14/04/2013
Estou preferindo desenhar. Ando com pouca disposição para escrever. As linhas andam muito tortas e irregulares.
Meu refúgio, a Ponta do Leme. A areia ainda úmida do sereno da madrugada, misturado com a bruma da maresia do amanhecer, acolhe o flanar preguiçoso da canga sacudida para ser estendida na praia.
Sinto cheiro de mofo misturado com o ar da manhã. Sinal de que faz tempo que os pavões misteriosos estampados no tecido não saem do armário lá de casa. O cheiro me incomoda, mas é por pouco tempo, sabemos. O necessário para o sol quarar meu quadrado, comigo dentro.
Há uns dois ou três dias venho pensando nessa crônica. O que não é muito comum. Gosto simplesmente de abrir a torneira da imaginação e deixar as ideias escorrerem pelo papel sem muita preparação para, depois, só enxugar os excessos, secar uns poucos respingos. Normalmente são pontos, vírgulas, exclamações e reticências. Foram as pausas da respiração, entre os pensamentos que se atiravam abusados pela corrente sem muita ordem, como quem não pede licença. Fazem cócegas quando são alegres e arranham se violentos, até que sejam polidos e enfileirados nas linhas imaginárias do meu caderninho sem pauta.
Quase sempre é assim, e como é bom! Acontece que, umas trezentas aberturas na torneira da fonte da imaginação depois, a gente se pergunta se o conteúdo despejado não está se tornando repetitivo. Pode ser chato para o leitor ler sempre sobre a mesma ponta/pedra/praia. O mar esmeralda, a bola colorida que rola para um lado e para o outro entre os pés ágeis dos garotos que capricham no altinho, aguardando a chegada dos novos parceiros para completar o time e darem início a pelada clássica na linha d’água, e o surfista que, sentado com as pernas cruzadas em posição de lótus, de frente para as ondas, seus objetos de desejo, arruma concentrado a tira do strep, preparando o velcro para prende-la no tornozelo, segundos antes de se entregar de corpo e alma ao mar que murmura sua musica, qual Flautista de Hamerlim.
Como o atleta, que já corre em direção a água, sou uma ratinha, atraída pelo feitiço musical, efeito mágico para meu coração cheio de dúvidas. Por que faz dias que ando preocupada com o tema dessa crônica... Falar de que? Tentei estabelecer parâmetros, e, por eles, eliminar algumas hipóteses.
Sem saber o que abordar, decidi definir o que evitar. Isso depois que surgiu a questão da repetição. Prontamente esse conceito foi substituído por outros. Substituído não, complementado. O bom humor e a leveza seriam essenciais. O texto não falaria de..., nem de..., muito menos abordaria..., ...,... ( não posso escrever as coisas a que me refiro sob pena de deixar de lado meu objetivo excludente). A lista de possibilidades plausíveis foi diminuindo, diminuindo... com o passar dos dias e o acompanhamento do desenrolar dos acontecimentos.
Até que resolvi reconsiderar as opções. Para encurtar, aboli o impedimento quanto a repetições, pelo menos no quesito Ponta do Leme. Foi ele o mais concreto, superlativo e fundamental (não posso usar essa palavra sem lembrar-me de Dante de Oliveira) mote para uma crônica quase outonal. Para terminar em grande estilo só falta descrever o desenho feito pelos rastros das pranchas que serpenteiam abusadas nas ondas lindas, tentadoras, mas perigosas - por que hoje paredes inexpugnáveis, já que quebrando sem piedade. Mesmo convidativas, são um sinal explícito de que a maré não está para peixe, pelo menos para certas espécies.
...
*Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa, gestora de carnaval e porta-estandarte do Saite Bão. Essa crônica faz parte da série “Ponta do Leme”, do SEM FIM... delcueto.wordpress.com
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