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TEMA LIVRE : Valéria Del Cueto
Eira e beira
22/09/2013
A porta aberta era um convite. Passou por ela. Do lado de fora um corredor. Seguiu até a escada. Olhou para cima, pensou em subir. Olhou para baixo, deduziu que a saída era por ali. Desceu para a vida.
Na portaria viu o outro lado do vidro: calçada de pedras portuguesas, asfalto, carros, árvores... Tudo depois da grade. Achou o acesso à saída. Mal tocou, um sinal indicou que o portão estava liberado. Abriu e saiu. Ouviu o barulho da grade se fechando rapidamente. Não havia como retroceder.
O caminho para a rua liberado. Várias opções: esquerda, direita ou em frente, cruzando a linha de carros que subia por cima dos canteiros e fazia das árvores sobreviventes do sufoco urbano. Abusadas, que são insistindo em resistir.
Sujeira, lixo, abandono. Calçadas mal cuidadas, com armadilhas para pedestres, desrespeitados cada vez que, ao fazer a curva da ladeira, graças ao ângulo para desviar dos carros que ocupam indevidamente o espaço público, sob as barbas complacentes e cúmplices dos representantes da lei e da ordem, os caminhões vão comendo sua beirada, subindo pela quina e afundando as tampas dos bueiros e afins. Ironicamente, cada invasão da calçada é presenciada por um atento policial militar. Destacado para vigiar as pessoas e ignorar solenemente as irregularidades que não são de sua competência. Mesmo sendo justamente sua viatura uma das que contribuem para o afunilamento e consequente destruição do bem público.
O olhar vai subindo para acompanhar o caos e a desordem daquela que já foi uma rua tranquila e bucólica. As marcas da degradação não são suficientes para encobrir o encanto que persiste nos pequenos detalhes da arquitetura, na graciosidade das árvores centenárias que formam um corredor de sombras onde passarinhos se divertem no meio da selva de pedra.
Pode parecer clichê, mas foi assim que viu e descreveu o entorno.
Um último detalhe chamou sua atenção: no alto das árvores as orquídeas floresciam brancas e lilases, agarradas aos troncos e sustentadas pelo carinho dos porteiros dos prédios. Quase um sinal. Aquele que procurava.
Mas não valia. Afinal, a florada acontecia anualmente e fazia parte do ciclo local.
Tomou o rumo do final da curta rua e ao dobrar viu, acima dos tapumes invasores da empreiteira, o azul do céu sem limites emoldurado pelas copas de amendoeiras confusas.
Suas vidas agora são assim. Num tempo especial. Suas folhas amarelam e caem quase na primavera, deixando o outono sem suas cores avermelhadas. Fazer o que?
Para frente segue o caminho que passa pelo calçadão, atravessa as pistas asfaltadas, atinge as ondas de pedras portuguesas de Burle Marx e, finalmente, chega na faixa de areia branca da praia quase deserta.
O vento sopra, os coqueiros balançam, o mar resmunga. Um deserto sem miragens, atravessado em passadas lentas. O mar chegando.
Na beira da imensidão, marcas de pés tatuam o terreno há pouco lambido por uma onda mais atrevida. Elas ajudam a contar a história das duas hastes com algumas poucas folhas que sustentam as flores espetadas na areia. Rosas vermelhas. Solitas e dramaticamente emolduradas pelo colorido de dia espetacular, sem meio tom.
Olhou as rosas. E se armou de cor, de paz e um pouco do amor alheio. Continuou. Era o sinal...
...
*Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Essa crônica faz parte da série “Ponta do Leme”, do SEM FIM... delcueto.wordpress.com
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