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TEMA LIVRE : Antonio Copriva
¨Decifra-me ou te mato¨
19/05/2005
Os casos de jovens que extrapolam os limites da civilidade e se insurgem contra seus pais com agressões verbais e físicas têm recrudescido. Por esse motivo, tomo a liberdade de reproduzir um artigo do jornalista Gilberto Dimenstein, um estudioso do comportamento dos jovens com livros publicados sobre o assunto, para que possamos, pais e filhos, refletir sobre o mundo em que estamos vivendo e ajudando a tornar, a cada dia, um pouco menos humano.
É minha intenção que esse exercício reflexivo não se caracterize por reações conformistas nem por acusações ou críticas eivadas de juízos de valor prenhes desse detestável senso comum que leva muitas pessoas a se acreditarem demiurgos do Juízo Final.
Se houver um mínimo sentido de se buscar novas formas de ação para trilhar outros caminhos, considerarei que minha função de pai, e de filho, diante da realidade que se nos apresenta, estará circunscrita dentro de um universo que busca soluções ao invés de festejar as derrotas.
DECIFRA-ME OU TE MATO
Gilberto Dimenstein
Apresentada pela polícia como uma das autoras do assassinato de seus pais, ocorrido em São Paulo, Suzane Richthofen, de 19 anos, tem muito a ensinar sobre a atual geração de jovens de classe média.
A violência de uma filha contra os pais, a ponto de levar ao homicídio, é obviamente um caso isolado, raríssimo. Mas é um ato que se presta a símbolo de uma tendência visível entre jovens: a de não saber lidar com os limites e com a frustração. É uma situação de escravização ao desejo, alimentada por uma sociedade que estimula a satisfação imediata das vontades. Essa é a radicalidade do consumismo. Viver é satisfazer imediatamente os desejos.
Suzane Richthofen disse que, ajudada pelo namorado, matou por amor. O pai, um engenheiro, e a mãe, uma psiquiatra, não gostavam do namorado e estariam inviabilizando a relação. Como não conseguiu a autorização para manter o relacionamento e não queria fugir de casa -até porque não sabia como iria assegurar o padrão de vida-, optou pelo assassinato.
¨Ela se comportou como uma menina que, por causa de um brinquedo, faz escândalo na porta da loja, indiferente ao desespero e à dor dos pais¨, analisa o psiquiatra Içami Tiba, especialista em juventude. ¨Vemos hoje, com muita frequência, jovens que não conseguem sair da infância, que são autocentrados. Agem com a irresponsabilidade de uma criança, mas com a força do adulto.¨
Há tempos, educadores e psicólogos têm alertado sobre a crescente dificuldade de impor limites em sala de aula, sobre a arrogância dos alunos que descamba para o desrespeito, sobre o consumo excessivo de drogas, principalmente álcool, e sobre uma atitude de descaso, do tipo ¨tanto faz¨.
Virou tema rotineiro nos seminários de educação o prejuízo causado nas crianças e adolescentes por uma sociedade que reverencia o consumo e, ao mesmo tempo, por pais que não enfrentam a frustração dos filhos. Esse tipo de pai ou de mãe ganhou o apelido de ¨adultescente¨, a mistura do adulto com o adolescente.
¨Estamos presenciando uma geração de pais que não consegue impor limites e, pior, faz de tudo para que os filhos nunca se frustrem. As crianças ficam ainda mais vulneráveis à dor¨, comenta Rosely Sayão, educadora e psicóloga, convencida de que Suzane é o caso extremado e doentio da intolerância de administrar limites e frustração.
Tempos atrás, Suzane possivelmente teria transformado a inconformidade em fuga de casa. Iria morar sozinha, assumindo uma postura adulta. Estaria sujeita às mais diversas privações materiais, mas experimentaria uma aventura enriquecedora. Teria sempre a deliciosa lembrança de um delírio apaixonado. ¨O curioso é que ela age como uma adolescente indefesa quando demonstra necessitar da aprovação dos pais, mas age como uma adulta ao planejar um assassinato¨, analisa.
Conhecido por criticar a ¨adultescência¨, o psiquiatra Içami Tiba costuma receber em seu consultório casais aflitos com a agitação e a indisciplina dos filhos, quase donos da casa, mandando e desmandando. ¨Um dia eu perguntei a uma mãe qual era a idade do filho que tanto a tiranizava. Ela me disse que ele tinha três anos. E eu lhe disse, então, que seria melhor que deixasse o filho sossegado e fosse, ela própria, procurar tratamento.¨
A busca da satisfação imediata estimula a impulsividade e a hiperatividade. Basta ver a relação dos adolescentes com os meios de comunicação, conforme detectou recentemente uma pesquisa da MTV sobre o que chamou de ¨geração zap¨. ¨Zap¨ vem de ficar ¨zapeando¨. Com o controle remoto, trocam-se, sem parar, os canais da televisão.
Submetem-se ao mesmo tempo a todos os estímulos. Não conseguem assistir a um mesmo programa por muito tempo -o rádio está ligado, a internet acionada, folheia-se uma revista ou fala-se ao telefone. A dificuldade de ler livros está associada, de um lado, à escola, que não sabe encantar pelas palavras, mas, de outro, à dificuldade de parar quieto e focado num só tema.
Vivemos numa sociedade que reverencia a velocidade -o reinado do tempo real-, o efêmero tecnológico, o corpo (as modelos são chamadas a dar opiniões sobre qualquer coisa), o desempenho, o sucesso individual, a moda. O valor das pessoas está muito mais no ter e, principalmente, no aparentar do que no ser.
Nada disso foi criado agora. São atitudes que acompanham a humanidade: o filho apaixonado que mata o pai aparece desde a Grécia antiga (daí surgiu o tal ¨decifra-me ou devoro-te¨). Mas, certamente, o culto do desempenho, da aparência e do consumo está mais extremado numa sociedade que parece ter extirpado as utopias, trocando-as pelo narcisismo coletivo - justamente isso provoca o extremo de uma jovem arquitetar, ¨por amor¨, a morte dos pais.
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