|
TEMA LIVRE : Marli Gonçalves
Padecer no paraíso
04/05/2019
Lá vêm, aliás já estão em todos os locais e em todas as formas com os apelos de compre aqui, dê isso, ela vai adorar aquilo, ofertas que nada têm de ofertas.
Referências à bondade, beleza, candura, entrega, amor incondicional, quanta alegria e felicidade!
Só padece quem não tem?
Só padece quem já perdeu a sua?
É para quem não quis ser mãe cortar os pulsos?
Ano após ano, essas datas estabelecidas para render homenagens e que viraram grandes momentos comerciais servem muito para a gente ter ideia de como anda a nossa sociedade.
Algumas dessas datas avançam pouco, ano a ano tão iguais, tão integradas e indiscutíveis que é o caso de alertar para que paremos um pouco para pensar que raio de paraíso é esse, além da adocicada palavra.
As mães estão felizes?
Cada vez que ouço, por exemplo, a quantas desanda a educação no país, ou mesmo fico sabendo quanto está custando a mensalidade de uma escola privada, de uma universidade, ou mesmo o preço de um livro, eu, que não tenho filhos, me solidarizo com as mães do mundo real.
Sempre acho que aí tem o mundo real, verdadeiro, dia a dia brabo e complexo, inseguro; e o outro, da fantasia, da propaganda enganosa, das crianças embonecadas, das celebridades que tornam seus partos e filhos bem tratados em filtros de luz nas fotos e patrocínios, e que ninguém mais nem fala que é para a poupança, pro futurinho.
O que todos eles vão ser quando crescerem?
Nada saberão sobre o pensamento, sobre a filosofia, a história, o pensamento?
Saberão fazer as contas, ler e entender sobre o que tanto falamos?
Voarão em foguetes?
Passearão por outros planetas?
Descobrirão curas para doenças hoje letais?
Saberão a importância da liberdade?
Terão aprendido a respeitar as mulheres, a igualdade?
Ou terão sido engolidos pelos dispositivos digitais com os quais convivem desde tão cedo?
Terão de passar pelo que estamos passando?
Conseguirão usar a roupa que estamos usando?
As coisas em volta vêm mudando com extraordinária rapidez.
Mas o ser humano ainda é frágil e ao mesmo tempo insano.
Em um país que não respeita o mínimo da dignidade e de suas próprias leis, os fundamentais direitos sociais e reprodutivos que deveriam dar condições de decisão às mulheres sobre o que querem mesmo e, se querem, se terão condições de ter e criar seus filhos é cruel mostrar a elas só o lado paraíso – é clamar pelo seu padecimento.
Não para de crescer o número de adolescentes grávidas principalmente nas classes mais baixas e que talvez vejam nisso apenas a beleza de poder afinal ter uma boneca, de carne e osso, e ainda a possibilidade de criar uma família, saindo da sua, desistindo da sua.
Como falar em controle da natalidade no país do Bolsa Família, que renega a educação sexual, que fecha os olhos para a realidade do monumental número de abortos ainda clandestinos, que não oferece qualquer salvaguarda a essas pessoas invisíveis?
Que não sente os nove meses, nem enxerga o inferno da depressão pós-parto?
Como as mães lidarão com a visível revolução de costumes, de gêneros, as novas e variadas formas de amor?
Dizem que seus corações aceitam tudo, perdoam tudo, que defendem seus filhos como as leoas, mas lembro que estas contam com o apoio de outras leoas, e ainda não é muito clara a solidariedade entre as mulheres.
Dia das Mães deveria ser momento de ampla reflexão sobre a condição da mulher, mas não se vê nessa época serem feitas pesquisas sobre o que realmente acontece, como se sentem, suas angústias, a visão do mundo que vislumbram.
Esse seria o grande presente: uma radiografia do que é ser mãe hoje no Brasil, no Sudeste, Sul, Centro-Oeste, Norte e Nordeste.
Perceber que a Mamma África vive entre nós.
...
*Jornalista
E-mails:
marligo@uol.com.br
marli@brickmann.com.br
Maio de 2019
Compartilhe:
|
|