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TEMA LIVRE : Antonio Copriva

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Cirineu, o Risonho
12/07/2005

Trocar gibi na porta do cinema era de lei. Uma coleção substanciosa de “Aí, Mocinho!” garantia um leilão animado quando chegava, disputando com Patos Donalds, Mickeys e Tios Patinhas ensebados. Um pouco de suspense não mataria ninguém, os gibis eram cobiçados como frango assado em porta de padaria.

As revistas em quadrinhas preenchiam um universo extenso no imaginário da garotada quando a televisão ainda era apenas uma notícia longínqua de outras terras. Todos vibravam e circulavam em torno das aventuras de personagens ingênuos e façanhudos, destilando senso comum em cada página, para nossa alegria e entretenimento.

Havia, além do mais, um divertimento extra. Logo que os gibis novos ou recém-trocados eram “abertos ao público” – público esse composto pelos amigos de brincadeiras e presepadas -, a chegada de Simão Cirineu era um acontecimento inusitado. Magrelo, alto, desengonçado, o mulato risonho se aproximava, pedia licença e pegava uma das revistinhas. E o espetáculo tinha início. Cirineu lia, relia, repetia trechos em voz alta e se arrebentava de rir, soltando espuma pela boca e rolando no chão. E a molecada lá, rindo com ele, da interpretação que o mulato magricela fazia para consumo interno das peripécias de seus heróis de papel.

Numa semana em que não havia trocado nenhum gibi na porta do cinema, por algum motivo do qual não me recordo, Cirineu se aproximou da pilha de revistas e todos aguardaram a reação que teria diante da falta de novidades. E ele mais uma vez nos surpreendeu. Escolheu um dos exemplares como se fosse único, sentou-se no batente da porta e deu seu show particular de grunhidos, espumadas e risos, fazendo a nossa delícia, pois ver Cirineu ler gibi era, definitivamente, um espetáculo à parte.

Uma só vez o mulato Cirineu acompanhou nossa turma ao cinema. Sim, porque, além de trocar os gibis na porta desses verdadeiros templos de diversão, a gente também gostava duns faroestes brabos e aculturantes, vendendo a imagem daqueles caubóis machos paca, sempre solitários na companhia de seus cavalos naquelas pradarias que não acabavam nunca e davam uma nostalgia desgraçada na gente.

Talvez seja desnecessário dizer que Simão Cirineu era um duro, um menino paupérrimo filho de um vendedor de garapa, e que a gente tinha se cotizado pra pagar a entrada dele no cinema. Todos estavam curiosos pra presenciar qual seria a reação do nosso amigo performático diante daquele gibi gigante, a tela cinemascope. E não teríamos um bangue-bangue com cavalos, diligências e tiroteios naquele domingo. O prato principal seria um filme com o cômico careteiro Jerry Lewis, um fenônemo na época.

A performance de Cirineu foi inesquecível para todos que assistiam à exibição. Aliás, à exibições, porque o nosso amigo riu tanto, gargalhou, deu murros nas poltronas e se jogou no chão, rolando e espumando de rir de tal maneira, que tinha mais gente assistindo a ele assistir ao filme do que olhando pra tela do cinema. Nem o gerente do local, diga-se de passagem, teve coragem de interromper tão desabusada manifestação de empatia espontânea e de autenticidade daquele pândego inocente e feliz.

Simão Cirineu...

Me contaram que foi morto pela polícia durante um assalto, anos depois. Imerso nesses noticiários sobre malas de dinheiro, dólares em cuecas, mensalões, merendas e outras falcatruas, fui lembrar logo desse meu amigo de infância, que nunca deve ter visto uma nota de dólar na vida. E talvez nem tenha comido pizza, muito menos dessas que se preparam nos fornos da impunidade.

Será que alguém acha graça?

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