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TEMA LIVRE : Antonio Copriva
A Figueira do Bom Jardim
07/12/2005
A linearidade bem-comportada das estradas de asfalto transforma as belezas da natureza em rotina muitas vezes entorpecedora. O corte fundo do piche no chão deflorado sugere trabalho, progresso, crescimento, desenvolvimento, disciplina, ordem, metas pré-fabricadas.
É saudável, pelo menos de vez em quando, girar o controle de direção e cair na aventura, sair off-road e mergulhar em paisagens desconhecidas, caminhos diferentes, trilhas que a imaginação irá beber com ansiedade.
Fiz isso dias atrás. Ia para uma dessas enfadonhas reuniões de negócios numa cidade vizinha, ligada a tantas outras por essa serpente escura que se move sob rodas, quando uma plaqueta de madeira rústica à beira da estrada chamou minha atenção, mexendo em minha memória avoenga como um tatu na toca. Freei o automóvel, manobrei e segui pela estradinha de terra fofa, por entre buracos, mata-burros e pontes em estado precário. O ar rescendia a assa-peixe e meu espírito vagava pelo ventre verde do cerrado como um tropeiro bêbado obedecendo a vontade da montaria.
Numa baixada, depois de um grotão onde as águas de um riacho serpenteavam preguiçosamente no final da tarde, deparo-me com a inacreditável imagem centenária de uma figueira à beira da estrada.
A majestade da gigantesca árvore se projeta sobre o caminho e avança para o alto num misto de proteção e aviso. Seus galhos não são tentáculos, nem garras, mas grandes dedos anciãos que remetem a memória para outros labirintos, carros de boi, cavalgadas, homens rústicos tocando suas tropas, revoltosos acampando debaixo do monumento que ela representa há mais de um século.
Passar lenta e silenciosamente debaixo de sua arquitetura é um sinal de reverência imperioso.
À medida que avanço com meu artefato de locomoção, que contrasta grotescamente com a figueira, posso ouvir claramente vozes, murmúrios, arrufos, gemidos, roncos, relinchos e conversas abafadas, sons impregnados em sua casca e em sua seiva, no balanço lento e cadenciado de suas folhas, serenas em movimentos imperceptíveis como um monge esculpido no espaço contra o paredão rugoso do cerrado.
Uma voz surge do nada chamando por quem passa, e me encontro e me perco na fronteira do encanto com o medo. De onde virá essa vibração? Contenho o impulso primevo da fera acuada e suspendo a marcha do bicho metálico. Busco, com receio, de onde partiu aquele som que gelou meu sangue e incandesceu minha mente. De trás da monumental figueira um vulto se insurge contra as sombras e se dirige em minha direção. Não entro em pânico porque me movimentei para a vizinhança de outro universo e já não vejo aquela figura como um ente mas como uma entidade. O caboclo forte, de chapéu e chinelas de couro, calça de brim folgada e camisa de linho, cigarro de palha entre os dedos, me cumprimenta desnudando a cabeça onde fartos cabelos brancos molhados de suor revelam um velho rijo e sério de olhar penetrante e calmamente alerta. Por alguns instantes só existimos ali, a sós, a figueira, o velho, eu e a imensidão silenciosa das matas e do cerrado. O tempo se perde nos desvãos do firmamento e aquele quadro que se pintou numa moldura de éter e plantas, de chão cru, poeira, pedras, cascas e galhos, desnuda em segundo plano uma construção antiga, de sólidas paredes e telhado escurecido pelo limbo do tempo, envolvida em uma suave bruma de onde gritos abafados de crianças e ruídos de animais parecem descortinar uma saga que se sucede a outras que chegam até nós em ondas sucessivas. Olho para o alto da figueira e imagino que esteja ligada à abóbada celeste por um alo de luz incandescente.
O leve farfalhar dos galhos da árvore, numa lufada de vento mais agressiva, me reconduz como uma vertigem para o espaço material no qual estou inserido. O motor do veículo ronca familiar e ritmadamente enquanto contemplo os ponteiros e as luzes do painel como se despertasse de um transe. Ao lado, a figueira mantém sua majestade. Uma fumaça branca e espessa se insinua pela chaminé da casa senhorial de onde o velho, em pé na varanda larga e acolhedora, com seu chapéu e seu cigarro, acena para mim num gesto de despedida. Observo meu equipamento fotográfico por alguns instantes mas percebo que essa cena não pode ser reproduzida dessa forma. Na tela da memória, a figueira, a casa, o cenário rústico e o velho já estão gravados indelevelmente, há muitos e muitos anos. É hora de seguir viagem.
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Comentários dos Leitores
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Comentário de magda lugon (magdalugon@gmail.com) Em 22/04/2010, 09h37 |
A Figueira do Bom Jardim |
Prosa poética precisa, sem excesssos de linguajar, conteúdo profundo de sentimentos íntimos e comunicação visual de grande expressão. Gostei muito. |
Comentário de tag (tguedesdafonseca@yahoo.com.br) Em 07/12/2005, 14h54 |
Belo texto! Viva Dardanelos! |
O cerrado por onde andei na mata é um pouco
diferente do seu, onde também andei, e só,
porém menos do que acordar todo dia em plena natureza, porque assim é Brasília e redondezas e Mato Grosso é tão grande que se tiver redondeza é ele mesmo. |
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