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TEMA LIVRE : Montezuma Cruz
Nheengatu, a língua que quase sumiu
13/12/2005
Betty Mindlin, antropóloga que costumava passar meses com os índios de Rondônia, entre as décadas de 1970 e 80, escreveu em “O Estado de S.Paulo” a respeito do livro do professor manauara José Ribamar Bessa Freire: “Rio Babel — A História das Línguas da Amazônia” (Editora Atlântica).
Releio, no meu baú de papéis e documentos importantes, o texto de Betty no qual classifica o livro de Bessa “um marco nos grandes estudos sobre o Brasil, uma história social das línguas, ao se debruçar sobre a expansão da língua portuguesa e a perda irreparável da plularidade lingüística”.
Notem, estimados leitores, a importância de Rondônia e da Amazônia na análise de Betty. “Quantos brasileiros sabem que até a primeira metade do século 19 a principal língua amazônica era o nheengatu, indígena? Nheengatu quer dizer: “a boa fala”. Foi a língua geral da Amazônia, falada nos núcleos urbanos, cidades, vilas, povoações, muito mais que o português. Foi o meio de comunicação entre os índios de línguas vernáculas distintas. Só na virada do século 20 seria possível afirmar que o português se tornara a língua hegemônica. Hoje se falam quase 200 línguas no Brasil.
Lembro-me de Betty, procurando entender o que diziam os suruís e seus primos zorós, no Parque Indígena do Aripuanã; das andanças que fazia com o companheiro, jornalista Mauro Leonel, e os saudosos e sempre solícitos sertanistas Apoena Meireles e José do Carmo Santana, Zé Bel. Em 1985, depois de alguns anos de pesquisa na selva entre os estados de Rondônia e Mato Grosso, ela escreveu “Nós Paiter” (Os suruí de Rondônia), dedicando-o aos próprios índios e a Carmen Junqueira, outra grande antropóloga brasileira. Mais tarde, escreveu em co-autoria com narradores indígenas, “Couro dos Espíritos” (Senac/Terceiro Nome).
A antropóloga dá verdadeira aula de brasilidade, algo digno de ser copiado e distribuído nas bibliotecas públicas e escolares dos nossos estados. Bom que as secretarias de Educação e Cultura já providenciassem isso. Procurem contato com ela.
Bessa Freire, o autor do livro citado por Betty, tem igual sentimento ao dos senhores, em relação à Amazônia. O sentimento de que “o percurso das línguas é o espelho do destino dos povos, de sua inteireza e expressão oral insubmissa na diversidade à sujeição pelos colonizadores, à escravização ou ao trabalho explorado e forçado, à absorção pelos dominadores, aos massacres e guerras”.
A história do nheengatu é complexa, lembra Betty, e ainda deveria ser mais investigada. A língua surgiu a partir do tupinambá do Pará e Maranhão, que muitos colonizadores já conheciam e por meio do qual conseguiram comunicar-se com povos de língua semelhante na Amazônia. Relata a antropóloga: “Com reprodução inicial espontânea, o tupinambá foi se transformando e distanciando do tupinambá original no contato com as línguas vernáculas (dos muitos povos indígenas da Amazônia) e com o português dos colonizadores, e aos poucos se tornou objeto de política deliberada nas escolas”.
Escrevo, nesta segunda-feira, 12/12, homenageando a memória do médico Ary Tupinambá Pena Pinheiro, que me foi apresentado, em 1976, pelo jornalista Lúcio Albuquerque. E homenageio, também, Esron Penha Menezes, João Tavares, Ciro Pinheiro, Abinael Machado e outros que sempre se dedicaram e ainda dedicam às lembranças das boas coisas que esta região oferece ao mundo.
A saber que, a partir de 2002, o nheengatu e o baníua foram reconhecidos como línguas oficiais brasileiras no município de São Gabriel da Cachoeira (AM), o que estamos fazendo? Qual o respeito que hoje devotamos ao conteúdo lingüístico de nossos povos indígenas? Importante considerar que no País, os índios conquistaram o direito a escolas diferenciadas, multilíngues e multiculturais. Por isso, Betty alerta que estudos semelhantes ao do professor Bessa Freire contribuem para repensar a política lingüística brasileira e impedir o desaparecimento do grande acervo falado ainda existente.
Na mitologia aruá, povo de Rondônia de apenas umas dez pessoas, os dois irmãos criadores fazem sair a humanidade do subterâneo e vão pondo as pessoas em roda. Enquanto um deles vai ensinando, o outro, circulando em sentido contrário, ensina uma língua diferente a cada um. E é por isso, conforme explica Betty, que hoje, no século 21, dizem os índios, os seres humanos devem entender-se na diversidade, na Babel mundial. E que é preciso aprender a apreciá-la.
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*Montezuma Cruz -- nosso Visconde de Taquatingua -- é colaborador estatutário do SuperSiteGood e redator de Cidades no “Jornal de Brasília”.
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