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TEMA LIVRE : Pra Seu Governo
O seqüestro de Bolívar
16/12/2006- Demétrio Magnoli*
Simón Bolívar, o Libertador (1783-1830), morreu em Santa Marta, na Colômbia, e seus restos mortais foram transferidos para Caracas, 12 anos depois.
Embora reverenciado como herói por toda a América Hispânica, a sua figura ocupa um lugar especial na Venezuela. É esse lugar que explica a apropriação de seu nome e de seu legado por Hugo Chávez.
Homem de seu tempo, ávido leitor de Montesquieu e Adam Smith, Bolívar inspirava-se na Revolução Americana e defendia a razão, a liberdade, a ordem e o livre mercado. Visionário, lutou até o fim pela unidade da América Hispânica, tomando como modelo a grande República da América do Norte.
A ¨revolução bolivariana¨ de Chávez, antiliberal e antiamericana, seqüestra a herança do Libertador e oculta as suas próprias fontes ideológicas.
O chavismo bebe em águas contemporâneas que escorrem do pensamento do historiador venezuelano Federico Brito Figueroa (1921-2000), autor de uma narrativa étnica do passado do país, e do cientista político argentino Norberto Ceresole (1943-2003), personagem controvertido que ingressou na política pelo peronismo de esquerda e, em 1987, ajudou a articular a rebelião militar de Aldo Rico e seus ¨carapintadas¨ contra os processos de violações de direitos humanos na Argentina.
Ceresole tornou-se conselheiro do grupo militar de Chávez pouco depois do frustrado golpe de 1992 e freqüentou o círculo presidencial até o final de 1999.
Ele desfrutou a amizade e compartilhou as idéias de Robert Faurisson, o pai intelectual da negação do Holocausto, e de Roger Garaudy, o intelectual francês que tentou conciliar comunismo e catolicismo até se converter ao Islã e, com financiamento iraniano, se entregar à difusão militante do anti-semitismo.
A visita de Chávez a Teerã, a proclamação de uma aliança ideológica com o Irã de Mahmoud Ahmadinejad e a inauguração de um escritório da Jihad Islâmica em Caracas são tributos do presidente venezuelano à influência duradoura do amigo argentino.
Os jovens de esquerda que aplaudem Chávez no Fórum Social Mundial não sabem o que fazem.
Recobrir o chavismo com a capa elástica do conceito de populismo é prestar homenagem à letargia intelectual.
Nos manuais de ciência política, populistas são os líderes que identificam uma relação de dominação do povo por uma elite tradicional e pregam uma ampla intervenção do Estado em benefício do povo.
A definição aceita quase tudo, dos tribunos da plebe em Roma a Mussolini, Chávez e Lula.
Mas, na História da América Latina, o populismo é uma adaptação do sistema político à modernização industrial, uma transição crítica na qual o líder populista conserva a ordem social em meio ao turbilhão da mudança.
Esse líder, que discursa para o povo de dia e confabula com os poderosos à noite, prende os movimentos sociais nas malhas do Estado, mas promove reformas verdadeiras e estimula um desenvolvimento industrial autônomo.
O ¨momento populista¨, que produziu Vargas e Perón, esgotou-se com a globalização. Só o estilo populista está presente no chavismo, pois a Venezuela ¨bolivariana¨, na contramão da retórica oficial, conhece um evidente processo de desindustrialização e petrifica as características petroleiras e rentistas da sua economia.
Sob o influxo da alta estrutural dos preços do petróleo, o regime optou pelo caminho mais fácil, apostando na apropriação estatal das rendas oferecidas por uma ¨economia de porto¨ que experimenta os prazeres de uma explosão de importações combinados com os de uma bolha inflacionária.
A economia de mercado subsiste nos interstícios de um capitalismo petroleiro de Estado que oferece lucros exuberantes para as altas finanças e os importadores.
Os muito ricos votaram em Chávez, assim como a massa dos pobres, assistidos pelas ¨missões¨, que são programas de redistribuição clientelística de rendas do petróleo.
Chávez é fruto do colapso da ordem na Venezuela, decorrente da falência histórica de uma elite dirigente rentista.
A sua ¨revolução bolivariana¨ consolidou-se na seqüência do locaute na estatal de petróleo PDVSA e da tentativa de golpe de Estado de 2002, os cantos de cisne da elite derrotada.
O regime eliminou a fronteira que separa Estado de governo, estabelecendo a supremacia do Executivo e bombardeando a independência do Parlamento e do Judiciário.
O chavismo, como movimento político, articula em torno do caudilho uma coleção disparatada de grupos que abrange semifascistas, reformistas moderados, castristas e até uma esquerda trotskista.
A unidade do movimento repousa sobre o controle estatal das exportações e depende, crucialmente, da manutenção do atual nível de preços do petróleo.
No plano interno, as prioridades imediatas do chavismo são a formação de um partido unificado e a aprovação da reeleição ilimitada, algo que romperia o quadro precariamente democrático no qual ainda se move o país.
No plano externo, Chávez busca deslocar o Brasil do centro da cena política.
De frente para o Caribe, mas situada na América do Sul, a Venezuela interpreta a si mesma como a plataforma geopolítica de construção da unidade da América Latina.
A Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), que tomaria forma a partir de um eixo energético comandado pela Venezuela (¨Petroamérica¨), é um projeto de múltiplas faces: comércio administrado, integração militar e programas sociais comuns.
A Venezuela entrou no Mercosul para implodi-lo e erguer, sobre os seus escombros, a ¨Pátria Grande¨ chavista.
¨O Mercosul, ou o reformamos e fazemos um novo Mercosul ou também se acabará. Não é um instrumento adequado para a era em que estamos vivendo. Vamos enterrar nossos mortos, irmãos.¨
Pronunciadas diante de um Lula patético, as palavras de Chávez evidenciam o sentido da política externa venezuelana e a natureza da armadilha em que se enredou, voluntariamente, o Brasil.
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*Demétrio Magnoli é jornalista, sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: magnoli@ajato.com.br
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