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A nova face da intolerância religiosa
18/08/2019
- O ESTADO DE S.PAULO
Os registros de intolerância religiosa são comuns Brasil afora, mas no Rio têm uma caracterÃstica particular: passaram a envolver traficantes e evangélicos.
Após ataques a terreiros de umbanda e candomblé na Baixada Fluminense, a polÃcia identificou o mandante e, na semana passada, prendeu oito traficantes acusados de integrar seu grupo, o chamado "Bonde de Jesus".
Segundo a polÃcia, o mandante é Ãlvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão, do Terceiro Comando Puro (TCP), um dos criadores do Bonde de Jesus, vertente inédita da intolerância religiosa no Estado. Estima-se que existam hoje 200 terreiros sob ameaça.
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Os casos são investigados pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), criada em 2018.
Investigações apontam que a peculiar relação entre religiosos e criminosos aconteceu depois que a cúpula do TCP foi convertida por uma igreja neopentecostal.
Há informações, ainda não confirmadas, de que Peixão teria sido ordenado pastor.
Trata-se de uma caracterÃstica especÃfica dessa facção, não sendo reproduzida nem pelos demais grupos de traficantes nem por milicianos.
“A situação de intolerância sempre existiu, mas tivemos uma piora quando indivÃduos ligados à cúpula de uma facção resolveram se converterâ€, afirma o delegado da Decradi, Gilbert Stivanello.
“Eles distorcem a doutrina religiosa e agridem outras religiões, sobretudo as de matriz africana.†As principais lideranças evangélicas do Rio condenam os ataques.
CONVERSÃO
Um dos primeiros a se converter foi Fernando Gomes de Freitas, o Fernandinho Guarabu, há cerca de quatro anos. Ele era o chefe do tráfico no Morro do Dendê, Ilha do Governador, até ser morto pela polÃcia em junho. Outros, como Peixão, se converteram depois.
“Alguns deles se converteram dentro do presÃdioâ€, diz Stivanello. “Eles viveram uma experiência distorcida da conversão, se tornando ‘bandido de Jesus’, como se isso fosse um ato de fé. Se pararmos para pensar, não é muito diferente do terrorismo islâmico. É difÃcil mesmo entender a lógicaâ€, afirma.
Coordenadora do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro Brasileira, Célia Gonçalves Souza diz que o problema da intolerância é nacional, mas que, de fato, vem ganhando contornos especÃficos no Rio, sobretudo pela penetração de evangélicos no sistema carcerário.
“No Rio, esse problema é muito escancarado e o narcopentecostalismo só tende a crescer. E passa pela questão das penitenciárias, onde há uma entrada muito grande dos neopentecostais.â€
Na Baixada Fluminense, traficantes passaram a ditar regras dos terreiros, como horários das cerimônias e uso de fogos de artifÃcio e fogueiras.
Eles também proÃbem as pessoas de andarem com roupas brancas ou de santo nas ruas. As invasões a terreiros são cada vez mais frequentes, com destruição de oferendas e imagens sagradas.
Há uma semana, o terreiro Ilê Axé de Bate Folha, em Duque de Caxias, foi invadido por traficantes – no 10.º caso da região. Eles quebraram todas as imagens e oferendas e ameaçaram de morte a mãe de santo, que está fora do Estado, na casa de parentes.
“O ataque aconteceu num sábado de casa cheia. Eles entraram com violência, mandando todo mundo sair e quebrando tudoâ€, contou uma testemunha. “O terreiro está fechado. Tiramos tudo de lá e não aconselhamos ninguém a voltar.â€
Segundo a mesma testemunha, outros religiosos fecharam os terreiros e se mudaram.
“Qualquer ataque com contornos de destruição do sagrado tem caráter de racismo religiosoâ€, diz a defensora Livia Cásseres, do núcleo contra a desigualdade racial da Defensoria Pública.
“À violência que já existe contra essas religiões – que têm uma série de direitos negados -, se soma agora a do varejo de drogas".
Mas a violência contra elas "é permanente desde a época colonial.†Por isso, para Livia, a solução passa por diferentes esferas.
ALERTA
A gravidade da situação fez com que, em julho, fosse realizada uma reunião com membros da umbanda e do candomblé, lideranças evangélicas, e representantes da PolÃcia Civil, do Ministério Público e da Defensoria Pública.
O pastor Marcos Amaral, da Comissão Contra a Intolerância Religiosa, destaca que a denominação “evangélicos†abrange um segmento grande de religiosos, com posicionamentos diferenciados.
Já o pastor Neil Barreto, da Igreja Batista Betânia, afirma que “a intolerância é o ápice da ignorânciaâ€.
“E a única solução para a ignorância que produz intolerância é a educação. Precisamos de uma campanha de educação e conscientização em todas as comunidades de fé.â€
Três perguntas para Ivanir dos Santos, Babalaô
O babalaô Ivanir dos Santos recebeu no mês passado, em Washington, o Prêmio Internacional de Liberdade Religiosa entregue pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos. Santos é coordenador da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa e organizador da Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, que é realizada há 12 anos, em Copacabana, no Rio.
1. Como foi receber esse prêmio internacional em um momento em que aumentam os ataques a terreiros, em especial no Rio?
— Esse prêmio, na verdade, vem reconhecer e legitimar a luta pela causa da liberdade religiosa, contra o racismo, de respeito aos direitos humanos. Estamos passando por um momento muito difÃcil. E não tem como pensar em intolerância sem pensar em racismo e preconceito contra grupos minoritários.
2. As religiões de matriz africana sempre foram alvo de preconceito. O que mudou agora?
— Sim, secularmente, elas sempre foram perseguidas: na Colônia e no Império, pela Igreja Católica; na República, pelo Estado; e nos últimos 30 anos, por grupos neopentecostais e, mais recentemente, por traficantes evangelizados. São traficantes que se dizem evangélicos.
3. Existe uma vertente racista nesse preconceito?
— Sim. No Brasil temos um preconceito disseminado na sociedade, virou um comportamento social baseado, fundamentalmente, no racismo. As tradições de origem africana sofrem preconceito. O mesmo pensamento se reflete também no samba, na capoeira, na congada. Manifestações culturais de identidade africana são frequentemente relacionadas ao demônio.
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