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Rios amazônicos: naufrágios e uma infinidade de armadilhas flutuantes
11/05/2008 - José Maria Tomazela - O Estado de S.Paulo

Tragédias como o naufrágio do Comandante Salles 2008, que deixou há uma semana mais de 50 mortos - 46 corpos haviam sido resgatados e pelo menos 10 continuavam desaparecidos até anteontem -, podem voltar a acontecer. Parte da frota que transporta de 30 milhões a 50 milhões de passageiros por ano é composta por verdadeiras armadilhas flutuantes.

São barcos de madeira malconservados e sem equipamentos básicos de navegação, como rádio, que levam cargas e pessoas em excesso. Calcula-se que pelo menos 5 mil sejam piratas, sem registro nas capitanias fluviais da Marinha. Construídos de forma artesanal, muitos não têm estrutura para enfrentar turbulências dos rios e clima amazônicos, sujeitos a tempestades tropicais e mudanças repentinas de vazão. ¨São como caixas de fósforo numa enxurrada¨, resume o comandante do Pelotão de Policiamento Fluvial da Polícia Militar, subtenente Fonseca Paes. É o caso do Comandante Salles, posto para navegar sem ter passado por inspeção. O Estado percorreu, entre quinta e sexta-feira, mais de 100 quilômetros dos Rios Solimões, Negro e Amazonas, a maior parte em barcos dos bombeiros e da PM de Manaus.

Já na partida, no porto da Manaus Moderna, irregularidades eram flagrantes. O navio Ana Maria V estava com tanto peso que a linha d?água ultrapassava o limite de segurança para navegação. Era um barco alto, de madeira, pronto para seguir viagem de sete horas até Orimixá. Empilhada, a carga de bebidas, sacaria e caixas de papelão tomava todo o porão e o convés inferior. Passageiros viajariam na parte superior. ¨Com uma carga dessas, há risco potencial de tombamento¨, disse o subtenente. A carga estava desamarrada e só foi presa na presença do policial. ¨Veja só, foram comprar o rolo de corda agora.¨ O conferente Manoel Pinto de Azevedo garantiu que estava ¨tudo dentro do limite¨. Ele mostrou a relação de passageiros que seria entregue à Capitania Fluvial da Marinha. Apesar do fluxo intenso de cargas e passageiros lotando dezenas de barcos, não havia ninguém para conferir planilhas. Em outro barco, a aposentada Maria José Machado, de 56 anos, ajeitava-se nas redes com seis netos pequenos para encarar 15 horas até Urucará. Ela tinha feito a viagem duas vezes e a achava segura, mas ficou assustada com o naufrágio. ¨A gente entrega na mão de Deus.¨


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O dono Tito Nogueira de Souza mostrou bóias e coletes salva-vidas ¨até de sobra¨. O problema é a lona plástica que protege as laterais do barco e, em caso de naufrágio, funciona como parede intransponível a quem tenta se salvar. ¨É para proteger do vento e da chuva¨, afirmou.

Outro problema: portas dos camarotes abrem para fora e, em caso de naufrágio, passageiros não conseguem abri-las pela pressão da água. Segundo o comandante, muitos barcos saem com lotação completa do porto, mas param no caminho para pegar mais passageiros. ¨O pessoal acena do barranco e o barco ou encosta ou reduz a velocidade para ser alcançado pela rabeta (pequena embarcação a motor).¨ Ele apontou dezenas de pontos de parada entre Manaus e Manacapuru.

No Rio Solimões, outro flagrante de abuso: o barco Suely Gomes transportava pessoas no convés superior. ¨É totalmente proibido. Um balanço mais forte joga as pessoas para fora e ali não tem bóias e coletes.¨ Outro barco menor, o Silas, passou com 12 a bordo, todos sem salva-vidas. Uma rabeta com duas crianças era conduzida por um garoto de, no máximo, 15 anos. Havia lanchas da Marinha patrulhando a região, mas os barcos usam furos e paranás, braços de rio, como rotas alternativas para escapar da vigilância. Num deles, o movimento intenso de embarcações incomoda as 50 famílias da Vila Nova, município de Iranduba. O pescador Manoel Veríssimo Rodrigues, de 53 anos, conta que o ¨banzeiro¨ - ondas provocadas pelos barcos - balança e estraga o telhado da casa flutuante que divide com a mulher Isabel, seis filhos e uma netinha. ¨Das 3 às 5 da manhã é muito barco e a casa não pára de balançar.¨ O movimento se repete das 15 às 22 horas, engrossado pelas balsas boiadeiras que retiram gado das margens alagadas do rio para levar à terra firme. ¨Os barcos que trazem as crianças da escola quase viram.¨ Segundo o subtenente, embarcações maiores são obrigadas a reduzir a marcha ao passar em áreas de tráfego de barcos menores, como vilas de pesca. ¨Ninguém obedece.¨

Na noite de quinta-feira, a lancha dos bombeiros cruzou com barcos que trafegavam sem iluminação. Piloto experiente, Paes conta que o Solimões é perigoso: águas avançam sobre as margens e arrancam, além de porções de terra que a tornam barrentas, troncos e capim. Nas partes mais profundas, que chegam a 60 metros, são comuns redemoinhos como o que teria contribuído para o naufrágio do Comandante Salles 2008. Ventos repentinos e tempestades ajudam a desestabilizar as embarcações. A lancha da PM foi uma das vítimas: a manobra rápida do subtenente não conseguiu evitar um tronco que partiu a ponta da hélice, próximo do encontro com as águas do Rio Negro. O tenente Andrey Barbosa Costa, mergulhador dos bombeiros, que participou das buscas dos náufragos, disse que o Solimões é perigoso até para bons nadadores. ¨Não se vê nada e a corrente pode arrastar para fora do ponto de busca.¨

A presidente da Associação dos Armadores do Transporte de Cargas e Passageiros (Atrac), Alessandra Martins, disse que o naufrágio foi uma tragédia anunciada. Segundo ela, há tempos a entidade denuncia as precárias condições do setor por falta de legislação e investimentos públicos. A Atrac anunciou uma greve para a próxima quarta-feira em razão de falta de segurança e do alto custo de combustível. ¨Nenhum barco vai sair de Manaus¨, prometeu.

  

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