No campo das ¨idéias de jerico¨, o plano de arrendar o estádio municipal do Pacaembu ao Corinthians é forte candidato a campeão do ano. É típico desta época, em que o critério do mérito e da competência é escangalhado pelas cotas, pelas bolsas (sem ser de estudo) e pelas dádivas sem causa, ofertar um histórico patrimônio público, gerado pelo esforço de todos, a uma entidade privada que teve todas as condições de gerar seu próprio patrimônio - e não o fez, enquanto outras com muito menos condições o fizeram. Seria um recibo passado de incompetência de gestão, para quem cede e para quem recebe. O clube reconheceria sua incapacidade passada, de construir, enquanto o poder municipal vaticinaria sua negligência futura, em administrar.
Na verdade, o clube de futebol com a maior torcida de São Paulo, cujos dirigentes sempre prometeram aos fiéis torcedores construir um estádio à altura de seu tamanho e de suas tradições, jamais se empenhou, honestamente, nessa tarefa. Já apresentou inúmeras maquetes de estádios, mas, com suas sucessivas administrações calamitosas, nunca cumpriu suas promessas de estádio próprio. Por que estaria qualificado, então, para assumir - por cerca de 30 ou 40 anos - a administração de um valoroso patrimônio que é de toda a população paulistana (e paulista) e no qual o poder publico municipal investiu, recentemente, uma boa soma de dinheiro dos contribuintes para realizar importantes reformas? Seria o mesmo que dizer que o Corinthians só se salvará se beneficiado com uma espécie de cota ou de Bolsa-Família - o que significa chamá-lo de carente crônico.
O argumento do elevado custo anual de manutenção do Pacaembu, assim como o da necessidade de novas reformas para a modernização do estádio - motivos esses mencionados em favor de seu estapafúrdio arrendamento ao Sport Club Corinthians Paulista - servem, justamente, para aniquilar a infeliz idéia. Pois custos elevados e necessidade de reformas pedem, acima de tudo, alta capacidade gerencial - e com base em seu retrospecto histórico isso é a última coisa que se pode pretender das administrações corintianas, notadamente a julgar por seus últimos gestores.
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É até provável que a infeliz idéia tenha partido de quem não aprecia muito a torcida corintiana e por isso tenta quebrar seu orgulho, humilhando-a com uma grande esmola. A ¨oferta¨ significa uma mensagem, aos corintianos, do seguinte teor: vocês não tiveram, não têm e jamais terão capacidade de construir um estádio. Só o terão se o ganharem de presente - dos cidadãos contribuintes que integram todas as demais torcidas do futebol paulista. Vocês não podem nem sonhar em se comparar, por exemplo, com o São Paulo, que construiu, com seu próprio esforço e competência - a mesma, aliás, que o tornou o único hexacampeão brasileiro e o detentor dos melhores troféus internacionais - o maior estádio particular do mundo.
Seria bom lembrar, a propósito, o que deveria servir de inspiração a todos os outros clubes paulistas e brasileiros: a construção do Estádio Cícero Pompeu de Toledo, no Morumbi. Depois de superar enormes dificuldades, o São Paulo conseguiu realizar seu sonho de um estádio próprio quando descobriu, ao sul da cidade, numa região ainda desabitada, o terreno a respeito do qual os grandes clubes brasileiros consideravam uma piada nele se construir um estádio de futebol. E em 2 de outubro de 1960, numa partida entre o São Paulo e o Sporting Club de Portugal, o Estádio do Morumbi foi inaugurado com menos da metade do anel superior completo (apenas 30 dos 72 vãos estavam completos). E foram mais dez anos de grandes sacrifícios, com todos os seus recursos carreados para a obra, que levaram à inauguração definitiva em 25 de janeiro de 1970.
O Pacaembu também teve uma inauguração memorável, assim descrita na edição de 28/4/1940 deste jornal: ¨Um acontecimento sem precedentes na historia dos esportes do Paiz marcou, hontem, a inauguração official do majestoso Estádio Municipal do Pacaembu, o mais moderno e completo de todo o continente sul-americano. Dizemos que um acontecimento sem precedentes na historia dos nossos esportes marcou aquella inauguração, pois de facto nunca houve uma festa esportiva que tivesse tido um cunho official de tamanha projecção, interessando tão de perto o que de mais representativo possui o Estado de S. Paulo.¨
E eis um episódio memorável desse dia. Na presença do ditador Getúlio Vargas - que proibira as bandeiras estaduais desde 1932 - desfilavam os grandes clubes, como Palmeiras e Corinthians, muito aplaudidos. Mas quando desfilou um pequeno clube, nascido do Clube Floresta - o chamado São Paulo Futebol Clube -, com as cores da bandeira paulista, o estádio inteiro o ovacionou de forma indescritível, ao que Getúlio comentou: ¨Pelo visto este é o time mais querido da cidade.¨ Assim surgiu o slogan ¨o mais querido da cidade¨. É neste e em muitos outros sentidos que o Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho faz parte da história do povo paulista e a todo ele pertence. Assim como foi construído e reformado, tem de ser mantido, preservado, modernizado, com toda a dedicação dos poderes públicos de São Paulo - e merecer o mesmo cuidado, por exemplo, que é devido ao Teatro Municipal, que só uma semelhante idéia de jerico levaria a arrendá-lo a uma companhia teatral ou produtora de espetáculos, em razão de seus altos custos de manutenção.
Entendam nossos administradores públicos que na relação custo-benefício há valores a respeito dos quais ainda não se descobriram fórmulas de quantificar. Um deles é o orgulho.
P. S. - Que no ano-novo todas as idéias de jerico morram no nascedouro.
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*Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor, administrador de empresas e pintor. E-mail: mauro.chaves@attglobal.net