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Ameaça ao Cerrado se volta para o Norte
27/09/2009 - Herton Escobar - O Estado de S.Paulo

Com mais de 50% da área destruída ou alterada, Cerrado registra migração do desmate para região preservada

Primeiro, a boa notícia: o desmatamento no Cerrado está em recessão. Nos últimos sete anos, caiu mais de 60%, segundo um levantamento inédito da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Agora, a dura realidade histórica: mesmo com essa redução, mais da metade do bioma já foi destruída ou alterada pelo homem nos últimos 40 anos, ao ritmo de quatro campos de futebol por minuto, sem que ninguém se preocupasse muito com isso.


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Pior: o desmatamento, agora, começa a se embrenhar pelas áreas mais preservadas de grandes remanescentes no norte do bioma. É difícil imaginar como um dos ecossistemas de maior biodiversidade do planeta, dotado de paisagens belíssimas e com quase quatro vezes o tamanho da Espanha, poderia passar desapercebido durante tanto tempo. Mas essa é a história do Cerrado, uma savana esquecida entre duas florestas tropicais.

De um lado, a Amazônia, ícone máximo da ecologia mundial. Do outro, a Mata Atlântica. E no meio delas, o Cerrado. Espalhado por mais de 2 milhões de km², do litoral do Maranhão até o norte do Paraná e oeste de Mato Grosso do Sul, o Cerrado é a pele que recobre quase um quarto do território brasileiro. É o segundo maior bioma do País, com um mosaico de cenários que variam de dunas e campos a chapadas e florestas.

Tem aproximadamente a metade do tamanho da Amazônia, só que com uma ferida muito maior: 835 mil km² de terras desmatadas, suficiente para cobrir uma França e um Reino Unido. A Amazônia perdeu 100 mil km² a menos - uma diferença do tamanho de Santa Catarina. Em muitos aspectos, é o bioma mais ameaçado do Brasil. Mais até do que a Mata Atlântica, que, apesar de estar reduzida a só 7% de sua cobertura original, conta com um movimento ambientalista forte a seu favor.

Já o Cerrado nem é citado na Constituição. É como se não existisse. Apenas 11% de suas terras estão protegidas por unidades de conservação e terras indígenas, comparado a mais de 45% no bioma Amazônia.

A reserva legal - área de uma propriedade que precisa ser obrigatoriamente preservada com vegetação nativa - é de 80% na Amazônia e 20% no Cerrado. Ou seja: na Amazônia preserva-se 80%. No Cerrado, é possível desmatar nessa mesma proporção.

Os efeitos ecológicos e climáticos dessa devastação estão longe de ser compreendidos. Já os efeitos econômicos são bem conhecidos. Quase toda a área desmatada do Cerrado está ocupada por pastagens e plantações. Se por um lado perdemos em biodiversidade e serviços ambientais, por outro, ganhamos em produção de alimentos e desenvolvimento. É dos solos desmatados do Cerrado que brotam 47% dos grãos, 40% da carne bovina e 36% do leite produzidos no País.

No pacote dos alimentos vêm a indústria de máquinas, sementes, fertilizantes, defensivos e outros insumos com alto valor de mercado, que viraram a base da economia do Centro-Oeste. A qualidade de vida, medida pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), é bem mais alta nos municípios em que o Cerrado foi convertido para o agronegócio do que nas áreas em que o bioma ainda está preservado.

Quando se leva em conta as pastagens naturais - campos de capim nativo aproveitados pela pecuária -, a área ocupada do Cerrado sobe para 52%. Nesse sentido, o Cerrado é um bioma dividido, meio a meio, entre os destinos de suas aptidões agrícolas e ecológicas. Resta saber para que lado a balança vai pesar nas próximas décadas, com o crescimento populacional, econômico e energético pressionando cada vez mais seus recursos naturais.

Desmatamento é maior em 5 Estados

Depois de quase esgotar a biodiversidade do sul do Cerrado, o desmatamento começa a rasgar também as entranhas do norte do bioma. Dados inéditos da Universidade Federal de Goiás (UFG), aos quais o Estado teve acesso com exclusividade, revelam uma migração alarmante da devastação para regiões de grandes remanescentes, como o oeste da Bahia, sul do Piauí e Maranhão, leste do Tocantins e centro-norte de Mato Grosso, onde o Cerrado se mistura com a Amazônia.

Na lista dos 30 municípios que mais desmataram o bioma nos últimos sete anos, 29 são desses cinco Estados, segundo os números do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento (Lapig) do Instituto de Estudos Socioambientais da universidade.

Mato Grosso, sozinho, desmatou 11 mil quilômetros quadrados entre 2003 e 2009, período que foi analisado no estudo. Isso equivale a metade do Estado de Sergipe. Já a Bahia desmatou mais do que um Distrito Federal: 6.200 km².

Goiás, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais também aparecem com grandes áreas desmatadas no período, porém distribuídas de forma mais fragmentada. Quase tudo o que sobrou do Cerrado nesses Estados, após 40 anos de ocupação intensa pela agropecuária, foram ilhotas de vegetação nativa, espalhadas entre um oceano de gado e grãos.

Os grandes remanescentes estão quase todos dentro de unidades de conservação, terras indígenas ou áreas onde o relevo é ruim para a agricultura. Muitas dessas áreas de capim também são usadas como pastagens naturais, em que o gado se alimenta do capim nativo. Ou seja: só porque aparecem verdes no mapa, não significa que não estejam ocupadas.

O Parque Nacional das Emas é exemplo desse isolamento: uma ilha verde no sudoeste de Goiás, cercada de lavouras e pastos por todos os lados (mais informações nesta página). O padrão parece estar se repetindo em Mato Grosso, onde terras indígenas começam a ficar isoladas na paisagem.

A situação mais crítica é a de São Paulo. Restam apenas 13% dos 80 mil km² do bioma nativo que originalmente cobria um terço do Estado. Sobraram vários parques e estações ecológicas, mas é preciso uma lupa para enxergá-los no mapa. O resto virou cana, pasto e silvicultura.

A fragmentação é péssima para a biodiversidade, pois muitas espécies não conseguem transitar de uma ilhota a outra. É como se o bioma estivesse "extinto na natureza" e sobrevivesse apenas "em cativeiro".

PIONEIRISMO

Os dados do Lapig incluem, pela primeira vez, taxas anuais de desmatamento para o Cerrado - algo que já é feito para a Amazônia há mais de 20 anos.

Os números, a princípio, trazem uma mensagem positiva: redução de 63% no ritmo de devastação do bioma no últimos sete anos. Em 2009 foram desmatados 2.997 km², comparado a 8.172 km² em 2003. Todos os Estados que fazem parte do bioma registraram quedas significativas, apesar de algumas oscilações no meio do caminho.

O diretor do Lapig, Laerte Ferreira, porém, não vê motivo para comemorar. "O que os números mostram é que a ocupação do Cerrado continua. O bioma continua extremamente ameaçado", afirma.

As estatísticas concordam com a previsão pouco animadora feita no início do ano por seu colega, Manuel Ferreira, de que o Cerrado poderá perder 40 mil km² de vegetação nativa por década até 2050.

Entre 2003 e 2009, sumiram 36.610 km². Os três municípios que mais desmataram nesse período foram Formosa do Rio Preto (2.066 km²), Correntina (1.067 km²) e São Desidério (990 km²), todos no extremo oeste da Bahia, uma área de forte expansão agrícola.

A situação fica caótica quando se leva em conta o desmatamento anterior a 2002. A soma dos dados, feita pelo Estado, mostra que mais da metade do bioma já desapareceu ou foi alterada desde a década de 70, quando a agricultura e a pecuária começaram a marchar com mais força na região.

A área total desmatada é de 835 mil km², igual a três vezes o Estado de São Paulo mais um Rio de Janeiro e um Espírito Santo. Isso equivale a 41% do bioma, que originalmente cobria um quarto do País. Outros 230 mil km², uma área do tamanho de Rondônia, são usados como pastagens naturais. Quando isso é levado em conta, a área ocupada do Cerrado sobe para 1,06 milhão de km² ou 52% da área original. Duas vezes o tamanho da Espanha.

Grande parte desse desmatamento foi feito na base do "correntão", sistema pelo qual uma corrente gigante é ligada a dois tratores e arrastada sobre o cerrado, derrubando tudo pelo caminho. Depois era só juntar a madeira, tocar fogo e vender o que sobrava como carvão.

"Trinta anos atrás, o correntão era ensinado em sala de aula. Era uma técnica agrícola", lembra a agrônoma Leonor Assad, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Hoje ainda é usado, mas em menor escala. Virou sinônimo de destruição em massa da natureza.

Os dados sobre o que aconteceu de 2002 em diante são tão recentes que os pesquisadores ainda não tiveram tempo de analisá-los a fundo. Não sabem, por exemplo, qual é a explicação para o sobe e desce das taxas anuais. É provável que estejam associados a fatores de mercado e flutuações nos preços de commodities (soja, carne, milho), a exemplo do que ocorre na Amazônia.

"A Amazônia e o Cerrado precisam ser vistos como um binômio, como duas partes de um mesmo sistema. O que afeta um, afeta o outro também", defende Ferreira. Outro fator que precisa ser levado em conta é o geográfico. "O filé mignon do Cerrado já foi ocupado. São as áreas mais planas e mais próximas aos mercados consumidores." Ou seja: o desmatamento pode estar caindo só porque deixou de ser um bom negócio.

O desafio dos cientistas agora é qualificar esse desmatamento mais recente, mapeando o uso que foi dado a cada hectare desmatado. Até 2002, a pecuária era a atividade que mais havia devastado o Cerrado: 542 mil km² (quase uma Bahia), comparado a 216 mil km² convertidos para a agricultura. "Só saber o que foi desmatado não basta; temos de saber o destino que foi dado a essas áreas", diz Ferreira.

Bioma é a grande caixa d’água do País

Por trás da aparência ressecada dos meses de inverno, quando a umidade do ar cai a níveis alarmantes em algumas regiões, o Cerrado esconde uma identidade secreta: o bioma é um gigantesco coletor e distribuidor nacional de água, crucial para o abastecimento das regiões Centro-Sul, Nordeste, do Pantanal e até partes da Amazônia. Um serviço ecológico gratuito que corre o risco de ser racionado por causa do desmatamento.

Das 12 bacias hidrográficas do País, 8 estão inseridas no Cerrado. A localização central do bioma, combinada com sua elevação topográfica e alta concentração de nascentes, faz com que ele funcione como uma caixa d’água. Cerca de 94% da água que corre na Bacia do Rio São Francisco em direção ao Nordeste brota no Cerrado - apesar de apenas 47% da bacia estar dentro do bioma, segundo cálculos da Embrapa.

No caso do sistema Araguaia-Tocantins, que corre para o Norte e vai desaguar no Pará, 71% da água da bacia nasce no Cerrado. A proporção é a mesma para o conjunto das Bacias do Paraguai e do Paraná, que drenam grandes áreas do Centro-Sul. "O rio é só o encanamento superficial pelo qual a água corre", diz o pesquisador Felipe Ribeiro, da Embrapa. "Mas onde a água nasce é no Cerrado. As besteiras que a gente fizer aqui em cima vão repercutir rio abaixo."

E as besteiras já estão em curso. Estudos realizados pelo pesquisador Marcos Costa, da Universidade Federal de Viçosa, mostram que o desmatamento nas cabeceiras do sistema Araguaia-Tocantins aumentou a descarga dos rios em 25%, apesar de não ter havido mudanças nos índices pluviométricos da bacia. Ou seja: a quantidade de água nos rios aumentou, apesar de a chuva ter continuado igual.

Mais água, nesse caso, é má notícia. O problema é que o solo coberto por pastagens e lavouras absorve menos água do que o solo com vegetação nativa. Consequentemente, mais água escorre para os rios e é levada para fora do Cerrado, diminuindo a quantidade de umidade que fica disponível para os ecossistemas locais e a própria agricultura - além de aumentar o risco de enchentes para as comunidades que vivem rio abaixo.

Segundo Costa, se o desmatamento continuar, é provável que os níveis de precipitação no bioma também sejam afetados. "Acho que estamos próximos do limite em termos climáticos."

"O problema mais sério que vamos ter daqui dez anos é com a irrigação", diz o pesquisador Hilton Silveira Pinto, do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri) da Unicamp.

O Pantanal também está de olho no problema. Praticamente todos os rios que deságuam no bioma nascem no Cerrado. "A sobrevivência do Pantanal depende diretamente da conservação do Cerrado", diz o ecólogo Leandro Baumgarten, da ONG The Nature Conservancy.

Soja chinesa virou brasileira no Cerrado

As árvores de casca grossa, caules retorcidos, e o chão de terra poeirenta não deixam dúvidas: o cerrado não é lugar para qualquer plantinha. Durante seis meses do ano, entre maio e setembro, não cai uma gota de chuva nesse interiorzão brasileiro. E mesmo quando chove, o solo nativo é imprestável para a agricultura: ácido, cheio de alumínio tóxico e pobre em quase todos os nutrientes essenciais.

Só mesmo um louco - ou um bando de cientistas destemidos - para achar que esse ambiente de biodiversidade riquíssima, porém aparentemente inóspito e improdutivo, poderia se tornar um dos canteiros mais férteis da agricultura mundial. Mas aconteceu. Foi obra da Embrapa. Trinta anos atrás, a recém-criada Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária lançou sua maior "insanidade" científica: pegou uma planta de origem chinesa, típica de climas temperados, e fez dela a rainha da agricultura tropical.

A soja, que até os anos 70 só podia ser plantada do Paraná para baixo, onde o clima era mais parecido com o da China, virou-se para o norte e tomou conta do cerrado. Invadiu Mato Grosso do Sul, avançou pelas bordas do Sudeste, conquistou Goiás, criou raízes em Mato Grosso, subiu pelo Tocantins, embrenhou-se no Maranhão e foi bater na porta da Amazônia. "Hoje temos tecnologia para cultivar soja em qualquer lugar do País, em qualquer época do ano", diz o pesquisador Plínio Souza, da Embrapa Cerrados, um dos principais responsáveis pela invenção da soja tropical. "É uma tecnologia 100% brasileira."

Em pouco mais de três décadas, turbinada pela nova genética verde-e-amarela, a oleaginosa chinesa transformou-se no maior produto do agronegócio brasileiro. Em 2007, a indústria da soja movimentou R$ 41,3 bilhões em grãos, máquinas, sementes, fertilizantes, pesticidas, logistica, mão-de-obra, refino de óleo, produção de ração animal e outros componentes da cadeia produtiva. Isso equivale a 6,4% do PIB agrícola e 1,6% do PIB total do País. Os cálculos foram feitos pela Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), a pedido do Estado. Só as exportações do complexo soja (grão, farelo e óleo) renderam R$ 26,2 bilhões no ano passado, e a expectativa é que passem dos R$ 32 bilhões em 2008.

Apesar não ser vista tradicionalmente como um "alimento" - a exemplo do arroz, do feijão e do milho, que são consumidos diretamente no prato -, a soja está embutida, direta ou indiretamente, em boa parte da dieta brasileira. É ingrediente básico de muitos alimentos industrializados no supermercado, na forma de lecitina ou óleo, e principal fonte de proteína na ração de suínos e aves, na forma de farelo. Só fica fora do menu do boi, que come principalmente pastagem. "Quando você come frango e porco, está comendo proteína de soja", diz o secretário-geral da Abiove, Fabio Trigueirinho. Segundo ele, seria impossível o Brasil abrir mão dessa cultura. "Se deixássemos de produzir soja, teríamos de importar."

No rastro da soja no cerrado vieram o milho, o feijão, o arroz, as máquinas, os fertilizantes, as estradas, a construção civil e os vilarejos transformados em metrópoles da noite para o dia com a riqueza do agronegócio. "Falar de soja é falar de muita coisa. Os benefícios sociais e econômicos, diretos e indiretos, são enormes", diz o ex-presidente da Embrapa, Silvio Crestana.

De mera periferia agrícola, o cerrado virou o celeiro de quase metade dos alimentos brasileiros. Hoje, 40% dos 200 milhões de hectares do bioma estão ocupados com 61 milhões de hectares de pastagens e 17,5 milhões de hectares de plantações. Segundo cálculos da Embrapa e da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), é desse território que saem 47% dos grãos (soja, milho, arroz, feijão, sorgo e algodão caroço), 40% da carne bovina e 36% do leite produzidos no País. "A incorporação do cerrado à agricultura foi a maior conquista do Brasil", afirma José Garcia Gasques, coordenador-geral de Planejamento Estratégico do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

No caso da soja, a contribuição do cerrado cresceu dez vezes entre as décadas de 70 e 80, passando de 2% para 20% da produção nacional do grão. No ano passado, chegou a 68,5%. De fato, a soja foi tão bem adaptada ao cerrado que hoje ela é muito mais produtiva no Centro-Oeste do que no Sul, onde foi originalmente introduzida. Em Mato Grosso, os melhores produtores chegam a ensacar 4,6 toneladas de soja por hectare (a maior produtividade do mundo), enquanto no Rio Grande do Sul a produtividade média é de 2 toneladas por hectare (a menor do Brasil).

UMA QUESTÃO DE LUZ

A soja que brota hoje no cerrado é muito diferente da que foi levada da China para os Estados Unidos, 200 anos atrás, e de lá trazida para o Brasil, no fim do século 19 - sempre restrita a regiões de clima temperado, próximo ou acima dos 30 graus de latitude. O pacote completo de conversão tecnológica inclui sementes, solo, microrganismos fixadores de nitrogênio e práticas adequadas de manejo - todos fatores essenciais para a produtividade da lavoura. Mas a diferença crucial está mesmo no DNA da planta, que os cientistas brasileiros retemperaram para adaptá-la ao cardápio climático tropical.

Curiosamente, a principal adaptação que os pesquisadores tiveram de fazer não foi para altas temperaturas nem para escassez de água (que é abundante nos meses de primavera e verão), mas para o chamado fotoperíodo - o tempo de luz ao qual a planta precisa ficar exposta para se desenvolver.

A soja é uma leguminosa que gosta de dias longos, com mais de 12 horas de radiação solar. Nas regiões temperadas de alta latitude, onde ela se originou, isso é fácil: no verão, por causa da inclinação da Terra, os dias passam facilmente das14 horas de luz. Já nas regiões tropicais, próximas ao Equador, como é o caso do cerrado, os dias e as noites são menores e mais constantes. Na altura do paralelo 16, onde fica Brasília, o fotoperíodo máximo no verão é de 13 horas e meia. E para uma planta, meia hora a mais ou a menos de luz por dia faz muita diferença.

Em condições de menor período de luz, a soja floresce precocemente e pára de crescer. Sem o melhoramento genético feito pela Embrapa, a soja plantada no cerrado floresceria mais cedo e não cresceria mais do que 30 centímetros, o que seria impraticável do ponto de vista econômico. A pesquisa permitiu retardar o florescimento e, com isso, aumentar a chamada fase vegetativa (ou pré-reprodutiva) da planta de 30 dias para 45 dias, anulando o efeito do fotoperíodo sobre o florescimento. "É como se a gente retardasse o início da puberdade na espécie humana para termos indivíduos maiores", compara Souza.

Hoje, a altura média da soja no cerrado é de 80 cm e os produtores podem optar por variedades de ciclo reprodutivo curto, médio ou longo, dependendo das condições de cada região.

SELEÇÃO ARTIFICIAL

O melhoramento genético na agricultura obedece aos mesmos princípios da evolução por seleção natural, segundo os quais os indivíduos mais adaptados ao ambiente são naturalmente selecionados para sobreviver e passar seus genes para as próximas gerações. A diferença é que a seleção nesse caso não é feita pelo homem, em vez da natureza.

Assim como cada pessoa é um pouco diferente da outra, cada pé de soja é um pouco diferente do outro. Uns crescem mais rápido, outros produzem mais grãos, outros resistem melhor a uma determinada doença ou precisam de menos água para sobreviver. O que os cientistas "melhoristas" fazem é selecionar anualmente as melhores plantas de cada lavoura de pesquisa, que são então usadas como matrizes para a produção de novas variedades.

É um processo lento, trabalhoso, que tipicamente passa por milhares de cruzamentos. A cada safra, pesquisadores da Embrapa selecionam 50 mil linhagens de soja e estabelecem 300 experimentos de campo, com 30 linhagens cada um. Cada nova variedade leva de oito a dez anos de pesquisa para ficar pronta.

Plinio Souza leva a reportagem do Estado até um galpão da Embrapa Cerrados onde estão armazenados milhares de saquinhos com amostras de soja selecionadas de várias regiões. Do lado de fora, técnicos debruçados sobre uma mesa passam as mãos por uma pilha de grãos, catando e eliminado aqueles que têm algum defeito, da mesma forma como uma dona de casa "cata feijão" antes do jantar. Só os melhores grãos permanecem no páreo para virar uma nova variedade. "É daqui que vai sair a soja que estará no campo em dez anos", profetiza o pesquisador.

Souza sabe do que está falando. Foi ele quem selecionou, no início da década de 80, a primeira variedade lucrativa de soja para o cerrado, chamada Doko. Extremamente rústica e ao mesmo tempo produtiva, ela podia ser plantada em áreas recém-abertas (desmatadas), com bons retornos logo na primeira safra. Outras variedades precisavam de pelos menos três anos de cultivo de alguma outra cultura para dar o mesmo resultado, o que tornava o investimento inicial de abertura e correção do solo muito arriscado. "A Doko abriu de vez o cerrado para a soja", afirma Souza. O resto da agricultura veio no embalo.

Enquanto Souza selecionava as linhagens mais promissoras no campo, os cruzamentos genéticos eram feitos nos laboratório da Embrapa Soja, em Londrina, pelo melhorista Romeu Kiihl. A Doko, segundo ele, nasceu de uma mistura de variedades americanas e indonésias. "Pegamos o que tinha de bom em cada uma delas e juntamos", conta. Ele calcula que 50% dos ganho de produtividade da soja nas últimas três décadas deve-se ao melhoramento genético. A média nacional, que era de 1.700 kg/hectare na década de 80 saltou para 2.800 kg/hec, em 2006.

SOLOS E NITROGÊNIO

Juntos, Souza e Kiihl plantaram as sementes tecnológicas de boa parte do PIB agrícola brasileiro. Nem mesmo a melhor soja, com a melhor das genéticas, porém, teria tido qualquer chance de sucesso no cerrado se não fosse por duas outras frentes de pesquisa: o melhoramento de solos e a fixação biológica de nitrogênio.

O solo nativo do cerrado é extremamente ácido (pH 4) e carente de nutrientes básicos, como cálcio, fósforo e potássio. "Não dá para produzir nada", resume o agrônomo José Roberto Peres, hoje chefe de gabinete da presidência da Embrapa. Foram necessários muitos anos de pesquisa para chegar a uma receita eficiente de corretivos minerais e fertilizantes capazes de compensar essa deficiência. Especialistas calculam que, sem essa "correção", a produtividade da soja no solo nativo do bioma não passaria de 0,3 tonelada/hectare. Ou seja: seria impraticável.

O ingrediente mais importante dessa receita, porém, não é um fertilizante químico, mas uma bactéria. Seu nome é Bradirhizobium japonicum, ou simplesmente rizóbio. Ela vive uma relação de simbiose com a soja, retirando nitrogênio do ar e transferindo-o para a planta em troca de carboidratos metabólicos. Sem essa parceria, os produtores teriam de adicionar 360 quilos de adubo nitrogenado (uréia) por hectare de solo para que a soja rendesse alguma coisa no cerrado. "Seria economicamente impossível", afirma Peres. "Em vez disso, a bactéria tira todo o nitrogênio do ar. Não precisamos adicionar nada."

Toda a soja cultivada no Brasil utiliza o nitrogênio do rizóbio inoculado na semente. A medida que a planta se desenvolve, a bactéria se multiplica e forma nódulos nas raízes, que funcionam como usinas biológicas de nitrogênio. A tecnologia foi desenvolvida pela lendária bióloga Johanna Döbereiner, da Embrapa, morta em 2000. Peres foi um de seus alunos.

FERRUGEM

O melhoramento genético não termina nunca, pois sempre há novas dificuldades a serem superadas. A principal ameaça à produção de soja no País hoje é a ferrugem, uma doença também de origem asiática que chegou ao Brasil em 2001. O fungo entrou pelo Paraná e rapidamente se espalhou por todo o País, causando prejuízos de US$ 125 milhões logo no primeiro ano e de US$ 2,4 bilhões, na safra 2007/08, segundo cálculos do Consórcio Antiferrugem, criado em 2004 para combater a epidemia.

Há várias fungicidas disponíveis no mercado, mas o controle é difícil. E caro: cada aplicação custa o equivalente a três sacas de soja por hectare. Desde 2007, o Ministério da Agricultura estabeleceu um regime nacional de "vazio sanitário", um período de 90 dias na entressafra durante o qual é proibido ter soja verde no campo, como forma de cortar a propagação do fungo.

Empresas do setor público e privado prometem plantas resistentes para o mercado em 2009. "Não vamos eliminar a necessidade de fungicidas, mas acho que vai ajudar bastante", avalia Romeu Kiihl, que há cinco anos trocou a Embrapa (onde estava há 25) pelo setor privado. Hoje é diretor científico da TMG Tropical Melhoramento e Genética, uma empresa nos arredores de Londrina que também desenvolve variedades de soja resistentes à ferrugem.

Tanto a Embrapa Cerrados quanto a TMG lançaram suas primeiras variedades resistente à ferrugem em maio deste ano, no Congresso Brasileiro de Soja.

Animal sagrado da Índia virou ícone

Quark é uma espécie de Brad Pitt da pecuária brasileira: um metro e oitenta de altura, mais de uma tonelada de peso, musculatura bem definida, costelas largas, traseiro avantajado, testículos bem desenvolvidos - tudo que uma vaca ou um pecuarista poderiam querer para os seus bezerros. Ele é o touro número um do ranking de reprodutores nelores da Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ) e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Uma obra viva de tecnologia em carne e osso, resultado de mais de meio século de melhoramento genético do rebanho nacional.

Aos 13 anos, já em idade avançada para um bovino, Quark é um dos produtos de maior sucesso da pesquisa agropecuária brasileira, com mais de 200 mil doses de sêmen vendidas para produtores de todo o País. Dentro de cada amostra, milhões de espermatozóides carregam um relato genético do desenvolvimento da pecuária de corte no Brasil. Escrito nas letras químicas de seu DNA nelore, esse relato é disseminado ao longo da cadeia produtiva, um boi após o outro, até chegar aos açougues, supermercados, churrasqueiras e contêineres refrigerados de exportação de carne.

Assim como a maior parte do gado brasileiro, Quark é descendente de imigrantes indianos. Cerca de 80% do rebanho nacional é composto de raças zebuínas (do tipo Bos indicus), de origem indiana, que só foram introduzidas no Brasil em maior escala a partir do século passado. Foi a salvação da pecuária nacional, que até aquele momento dispunha apenas de raças taurinas (do tipo Bos taurus), de origem européia, trazidas pelos colonizadores na época do Descobrimento.

Acostumados ao clima temperado do Hemisfério Norte, os taurinos (simental, angus, hereford e outras raças) não suportavam o ambiente tropical brasileiro. Os animais literalmente caíam mortos no campo, vítimas do calor e dos carrapatos. Sobreviveram apenas algumas linhagens mais rústicas, como a que deu origem ao gado pantaneiro, porém sem importância econômica. Até hoje as raças européias são produzidas apenas no Sul do País, onde o clima é mais ameno e a incidência de carrapatos é menor, por causa das geadas.

Já os zebuínos (nelore, gir e guzerá) trazidos da Índia tropical se adaptaram perfeitamente às condições brasileiras. Naturalmente resistentes ao calor e ao ataque dos carrapatos, eles proliferaram em velocidade espantosa. De um plantel de apenas 7.300 animais importados entre o início do século 19 e meados do século 20 (a última importação foi em 1962), nasceram os 136 milhões de zebuínos do rebanho atual, que produzem a maior parte da carne e do leite brasileiros. "A multiplicação do zebu no Brasil é algo sem precedente no mundo", afirma Luiz Antonio Josahkian, superintendente técnico da ABCZ, entidade que representa o setor desde 1967.

O animal sagrado da fé indiana virou o animal sagrado do agronegócio brasileiro. Hoje o Brasil tem o maior rebanho bovino comercial do mundo, com 170 milhões de cabeças (quase um boi por habitante) e uma produção anual de carne que passa dos 9 milhões de toneladas. É também o maior exportador de carne bovina do mundo, com 2,2 milhões de toneladas vendidas para o exterior em 2007 - um salto gigantesco em comparação a dez anos atrás, quando o País exportava 370 mil toneladas, segundo dados do Instituto FNP. A taxa de abate é de 40 milhões de cabeças por ano, aproximadamente.

As estatísticas disparam entre as décadas de 70 e 80, em sincronia com o avanço das técnicas de reprodução assistida, como inseminação artificial, fertilização in vitro, repartição e transferência de embriões, que permitiram escalonar e acelerar significativamente o melhoramento genético do rebanho. Entre 1979 e 2006, segundo cálculos da Embrapa, a produção de carne brasileira cresceu uma média de 5,7% ao ano.

PASTAGENS MELHORADAS

Outra inovação crucial neste período foi o melhoramento de pastagens. Assim como os bois, as gramíneas que servem de alimento para os animais tiveram de ser trazidas de fora. Mais de metade das pastagens brasileiras são cultivadas com espécies importadas, principalmente do gênero Brachiaria, de origem africana, bem mais resistentes e produtivas do que as gramíneas nativas. Introduzidas nos anos 60 e melhoradas geneticamente a partir da década de 80, as braquiárias triplicaram a capacidade de suporte das pastagens nacionais - de 0,5 animal por hectare para 1,5 animal por hectare. Entre 1996 e 2006, o tamanho do rebanho brasileiro aumentou 11%, apesar da área de pastagens ter diminuído 3%, segundo dados do Instituto FNP.

"A pastagem é o prato de comida do boi", diz o pesquisador Alexandre Caetano, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (Cenargen), em Brasília. "Não adianta ter uma ótima genética animal se não tiver uma alimentação adequada que permita ao animal expressar essa genética." Plantar e manter um bom pasto, segundo os especialistas, requer tanto cuidado quanto uma lavoura. O nível tecnológico é tão alto que o comércio de forrageiras hoje é o terceiro maior mercado de sementes do Brasil, atrás apenas da soja e do milho.

Na ponta da faca, o churrasco brasileiro é uma receita de gado indiano alimentado com capim africano e temperado com tecnologia brasileira. "Juntas, a genética zebuína e as braquiárias formaram um combinação imbatível", comemora Josahkian.

MELHORAMENTO GENÉTICO 'NO OLHO'

O processo de melhoramento genético é igual para plantas e animais. A cada ano, no caso do gado, os melhoristas selecionam os melhores animais de um determinado rebanho e os utilizam como "reprodutores genéticos" para compor os rebanhos dos anos seguintes, de forma que as características desejadas sejam transmitidas via DNA para as próximas gerações. Com o tempo, os genes desses animais se disseminam pela população, melhorando a qualidade do rebanho como um todo.

Ao contrário do que ocorreu em culturas agrícolas, porém, em que as instituições públicas de pesquisa comandaram a inovação tecnológica do setor, o melhoramento do rebanho brasileiro foi feito principalmente pelos próprios criadores. "Nossa pecuária foi toda feita no olho", diz o especialista em melhoramento genético da ABCZ, Carlos Henrique Machado. "O Brasil é o que é hoje graças ao olho dos nossos profissionais."

Uma nova importação de zebuínos da Índia - a primeira desde 1962 - foi autorizada em fevereiro pelo Ministério da Agricultura. Só que dessa vez os animais virão na forma de embriões congelados, produzidos de animais selecionados por técnicos da ABCZ. Apesar de serem animais rústicos, é algo que "vai ajudar a refrescar um pouco o sangue do rebanho", explica Machado.

O gado que chega hoje do campo para o açougue é muito diferente do que chegou da Índia para o Brasil um século atrás. Ficou maior, mais pesado, mais resistente, mais eficiente, mais fértil e mais precoce. Animais que na década de 70 eram mortos com cinco anos hoje já chegam ao peso de abate (18 arrobas) com dois anos e meio, graças a uma série de melhorias genéticas, nutricionais e sanitárias. "É um ganho não só de tempo, mas de qualidade, pois o animal mais jovem tende a ter uma carne mais macia", diz o especialista Kepler Euclides Filho, pesquisador da Embrapa Gado de Corte, em Campo Grande (MS).

Em condições ideais, animais nelores superprecoces são abatidos com 18 meses. "Basicamente, queremos um animal que cresça rápido, coma pouco e produza bastante carne", resume Caetano, do Cenargen-Embrapa.

Quark é exemplo de um "animal elite" que combina várias dessas características. As estatísticas mostram que os bezerros produzidos com seu sêmen desmamam mais cedo, ganham peso mais rápido e são reprodutores mais eficientes do que a média dos rebanhos. "É um touro excepcional, que contribuiu muito para a pecuária de corte no Brasil", diz Marcos Labury, gerente da Alta Genetics, em Uberaba (MG), empresa especializada no comércio de sêmen bovino. Ele calcula que Quark já tenha produzido cerca de 80 mil filhos, mais uma incontável prole de netos e bisnetos - que são os animais que vão de fato para o frigorífico.

O sêmen é comercializado em tubinhos congelados de 0,25 mililitro, que depois são usados para inseminar as fêmeas. Os garrotes que nascem são usados como doadores genéticos ou soltos no pasto para cobrir as fêmeas do rebanho de corte. Uma amostra seminal de Quark custa R$ 40 - mais que o dobro da média de um bom animal. O sêmen mais caro do mercado, vendido a R$ 250 o tubinho, é do touro Basco, um nelore de 5 anos leiloado no ano passado por R$ 4 milhões - o boi mais caro do mundo, segundo Labury.

CLONAGEM PARA PERPETUAR GENÉTICA

Fazendas especializadas trabalham também com a genética de fêmeas, valorizadas pela capacidade de emprenhar cedo e produzir leite para criar filhotes saudáveis e cheios de carne. Nesse caso, porém, os óvulos não podem ser comercializados individualmente, como o sêmen, porque as células não resistem ao congelamento - problema que também se enfrenta na reprodução humana. A solução mais comum é fazer uma fertilização in vitro, combinando o sêmen e o óvulo de animais selecionados para produzir embriões com características genéticas específicas às necessidades do produtor.

A Fazenda Mata Velha, em Uberaba (MG), por exemplo, é especializada em genética de elite. Dona de algumas das vacas mais premiadas do País, ela vende embriões congelados por uma média de R$ 102 mil e fêmeas, por R$ 80 mil, segundo o zootecnista Nilo Sampaio. Em uma visita recente do Estado à fazenda, ele pára diante da baia de uma vaca mais idosa, chamada Divisa. É o animal símbolo da empresa, vencedor de vários prêmios em seus de 16 anos de vida (equivalente a 80 anos em idade humana). "Essa é uma que gostaríamos de clonar", afirma Sampaio, dando a dica do novo projeto tecnológico da empresa, que recentemente criou um laboratório especificamente para isso.

Apesar de ainda apresentar índices de sucesso muito baixos, da ordem de 5% (cinco nascimentos para cada cem embriões transferidos), a clonagem já aparece como uma tecnologia viável para reprodução de animais de alto valor genético ou de espécies ameaçadas de extinção. Dessa forma, animais mais velhos como Quark e Divisa podem ser duplicados ou até triplicados, e animais mais jovens que morreram prematuramente podem ser "ressuscitados" com o mesmo DNA.

Pelo menos três empresas especializadas oferecem serviços de clonagem, a preços que variam entre R$ 40 mil e R$ 50 mil por clone - uma pechincha para reproduzir um animal que pode valer milhões. O problema, segundo especialistas, é a falta de regulamentação sobre o tema, que impede que os animais clonados sejam registrados. Conseqüentemente, seu material genético não pode ser comercializado oficialmente. É como se os animais não existissem.

Um projeto de lei da senadora Kátia Abreu que regulamenta a clonagem está tramitando na Comissão de Ciência e Tecnologia do Senado desde 2007. "Uma vez que isso seja resolvido acho que a demanda pela clonagem vai aumentar muito", prevê o pesquisador Rodolfo Rumpf, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, que produziu os primeiros clones bovinos do País (todos ainda sem registro).

RESISTÊNCIA VERSUS MACIEZ

O carro-chefe do melhoramento genético, porém, continuará a ser o trabalho clássico de seleção e cruzamento - que também continuará a ser feito "no olho", mas cada vez mais apoiado em ferramentas da genômica e da biologia molecular.

"Temos potencial para melhorar muita coisa ainda", afirma Machado, da ABCZ. Uma desvantagem dos zebuínos em relação aos taurinos está relacionada ao marmoreio, ou à quantidade de gordura intramuscular. As raças européias depositam mais gordura entre as fibras, por isso sua carne é mais macia e saborosa (o que explica, em grande parte, a diferença entre as carnes argentinas e brasileiras, por exemplo). Já os zebuínos depositam a gordura como uma capa, na parte externa do músculo.

"O zebu ganha em rusticidade mas perde em qualidade. Alguns mercados questionam isso", reconhece Machado. Uma maneira de reduzir essa diferença seria aumentar geneticamente o marmoreio ou reduzir ainda mais o tempo de abate (precocidade). "Temos quantidade e preço, mas se falar em qualidade, não somos bem vistos. Temos uma reputação muito ruim lá fora", afirma Sampaio, da Fazenda Mata Velha. Outra fonte de preocupação é a questão sanitária, principalmente com relação à febre aftosa, que vai e volta causa dificuldades para a exportação de carne brasileira.

Assentado transforma reserva em carvão

Com a netinha Eduarda, de 4 anos, agarrada à perna, o assentado Almerindo Ribeiro, de 60, retira o resto de carvão do forno e vai enchendo os sacos de ráfia usados. Cada um, com cerca de 20 quilos, será vendido por R$ 3. A última fornada rendeu quase uma tonelada de carvão - receita bruta de R$ 135. Se a chuva não atrapalhar, ele enche o forno quatro vezes por mês. Madeira para queimar não falta: troncos e galhos derrubados e tostados pelo fogo se espalham por uma área de 80 mil metros quadrados.

O carvão sustenta a família do assentado - ele, a mulher e duas netas - no lote que recebeu do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), no Assentamento Teijin, em Nova Andradina, no sudoeste de Mato Grosso do Sul. As árvores que ele está queimando fazem parte de uma das poucas áreas de Cerrado denso em uma região devastada pela pecuária extensiva e pelo avanço da cana-de-açúcar.

É a reserva legal da fazenda Teijin, de 27,5 mil hectares, desapropriada em 2004 pelo Incra e invadida, depois, por integrantes da Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetagri) e do Movimento dos Sem-Terra. No início da década, era uma área preservada que serviu de abrigo para onças, bugios e outros animais. Chegaram como sobreviventes das terras alagadas pela formação do lago da Hidrelétrica Sérgio Mota, no Rio Paraná. Cerca de 200 das 1.124 famílias assentadas se instalaram na reserva.

Os moradores fazem a derrubada, ateiam fogo para eliminar a galhada e usam motosserras para dividir os troncos e abastecer os fornos. O produto também é vendido a R$ 30 o metro cúbico para atravessadores que abastecem siderúrgicas e distribuidores em São Paulo. "É o nosso ganha-pão", diz Ribeiro. "A gente sabe que não pode fazer, mas se obriga por falta de alternativa." Em dois anos, o assentado só conseguiu produzir carvão. Ele gastou R$ 600 na construção do forno e pagou R$ 15 a hora ao dono da motosserra para botar abaixo o arvoredo. Ribeiro disse que ainda pode desmatar mais, até 60% do lote. "Ninguém vem conferir, mas a gente não tira tudo porque tem consciência."

Migrante do Paraná, Ribeiro sonhava ter a terra para plantar milho, feijão e abóbora. "Mas sem água, vai produzir de que jeito?" Ele conta que o Incra fez o poço, mas não instalou o encanamento. Os R$ 15 mil do programa de moradia também não saíram, por isso ele continua em um barraco. "Só agora o Incra liberou adubo, calcário e arame para a cerca, mas sem a destoca não dá para plantar."

No terreno da assentada Otelina Leite Lobo, de 80 anos, o único forno não dá conta de toda a madeira cortada e enfileirada em uma área de 12 hectares. Uma parte foi vendida e levada de caminhão para uma carvoaria fora do assentamento. Ela é dona do lote, mas quem cuida de tudo é o filho, Deusdete Lobo, de 59, assentado há quase 20 anos no Casa Verde, um assentamento vizinho.

Inicialmente, Lobo disse que o forno estava desativado. Depois, com a evidência das paredes quentes e da fumaça, alegou que era de um vizinho. O barulho da motosserra também vem do lote vizinho, alega. Os troncos empilhados pelo terreno foram cortados com anuência do Incra, garante. "Vieram numa reunião e disseram que podia abrir 60% do lote." O assentado diz que sua mãe não invadiu a reserva. "Puseram ela aqui, coitada, no meio do mato." Ele conta que várias pessoas tentaram comprar o lote, alegando que a mulher é muito idosa para cuidar. Por causa da idade avançada, Otelina não dorme no barraco, em uma clareira em meio à fatia que sobrou do Cerrado. No fim da tarde, vai à casa do filho.

O trabalhador rural Osvaldo Alves de Oliveira, de 53, recebe R$ 150 por mês para cuidar do lote da sobrinha Ana, que mora na cidade. Ele presta serviço na queima de carvão para outros assentados. Parte do material estava armazenada em sacos sob uma lona preta no lote 117 à espera do comprador. Era Oliveira quem operava a motosserra cujo ronco se ouvia da estrada. Ele suspendeu o serviço assim que a reportagem se aproximou. "Acabou o combustível", alegou. O lavrador calculou que a madeira derrubada era suficiente para encher "uns 25 caminhões". Antes, Oliveira cuidava do lote de um comerciante, dono de lanchonete no distrito de Casa Verde. "Queimei carvão para ele um tempão. Queria plantar, mas ele não deixou." O lavrador conta que em quase todo lote tem um forno.

Ele mesmo já construiu alguns em troca de uma parte da fornada. Se a renda do carvão fosse sua e não do dono da madeira, já teria juntado o suficiente para comprar um lote. "Vendem por R$ 15 mil ou R$ 20 mil, depende da benfeitoria."

O coordenador da Fetagri, Antonio Barbosa, também assentado, culpa o Incra pela devastação. O órgão teria cedido à pressão dos prefeitos das cidades do entorno e assentou mais gente do que cabia. Como as áreas desmatadas eram insuficientes, os assentados que ficaram sem lotes ocuparam a reserva. "Era gente que ficou anos acampada e foi passada para trás na hora de assentar, pois os prefeitos tinham listas políticas." Segundo ele, como o Incra não conseguiu retirar os ocupantes da mata, fechou os olhos para a devastação.

IRREGULARIDADE

"No início, foram considerados irregulares e não receberam verba para nada. Depois, o Incra autorizou o desmate de até 40% do lote, mas não fiscalizou e muitos cortaram tudo", relata Barbosa. O destino da madeira cortada é a produção de carvão. "Todos sabem que é proibido vender madeira e queimar carvão, mas fazem por baixo do pano." Não é a única irregularidade. "Aqui tem de tudo. Tem gente que vende o lote, gente que mora em outro lugar e deixa alguém cuidando, gente que desmatou até fora do lote."

O Incra em São Paulo informou que a ocupação não interfere na reserva legal, pois foi constatado que a fazenda tinha mais matas do que os 20% exigidos por lei. Segundo o órgão, a invasão foi objeto de um termo de ajuste de conduta entre os assentados e o Ministério Público Federal para evitar o desmate. O Incra informou que já pediu à Polícia Ambiental Estadual a fiscalização da venda e queima de madeira e aguarda um relatório com as providências. Sobre a falta de funcionários, alegou que as equipes estão com frequência no assentamento.

Em novembro de 2007, o Estado já havia flagrado fornos de carvão na reserva da Teijin. Na época, o Incra informou que era crime ambiental e os assentados seriam excluídos. Informou ainda que as famílias alojadas em áreas cobertas por matas seriam transferidas para outro assentamento. Todas continuam no mesmo lugar.

  

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