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Críticas Construtivas Se todo governante quer, por quê não?!!!

DE ÚLTIMA!

Morrer de novo
21/03/2010 - Christian Carvalho Cruz - O Estado de S. Paulo

Maria Gonçalves tem 37 anos, mas nasceu praticamente ontem. Foi em novembro passado, numa sexta-feira 13 de céu limpo e sol bobo demais para afugentar o frio da primavera. Nasceu sentada, num posto de saúde em Brusque (SC), com o marido Sérgio Baumgartner do lado e o infectologista Ricardo Freitas na frente.

Foi o dr. Freitas que trouxe Maria à luz, quando disse para ela: "Dona Maria, a senhora não tem o vírus. Nunca teve".

Na hora ela não soube direito se retomava a vida ou se morria mais um pouco. "Fiquei feliz, mas não fiquei." A sensação, que perdura, era de estar vivinha da silva, mas de pés juntos a sete palmos de fundura, soterrada pelo sofrimento de acreditar, por seis anos e meio, que tinha o HIV comendo-lhe as veias. E não tinha. Nunca teve.


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Em 2003, grávida do quinto filho aos 30 anos, exames pré-natais de praxe, Maria foi informada pela enfermeira Vera Civinski, então coordenadora do Serviço de Assistência Especializada (SAE), da prefeitura de Brusque: "Tu tens aids".

O resultado do exame feito em Florianópolis pelo Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen), ligado à Secretaria Estadual de Saúde, informava logo abaixo do nome de Maria: "Amostra positiva para HIV-1". Maria ganhou os remédios antirretrovirais, maços e maços de camisinhas e uma vida infernal para tocar. Ou tentar.

"Não tinha muito que fazer, não. Era esperar a morte vir me buscar. Voltei pra casa pensando no que seria dos meus filhos quando eu me fosse." Depois foi matutar como teria se contaminado.

"Ah, só pode ter sido no acidente de moto", pensou. Um ano antes, Maria e Sérgio caíram em Guabiruba, a cidadezinha pegada a Brusque onde moram. Quando ela acordou estava no hospital, com os arranhões sendo limpos com gaze e pinça. "Não limparam o material direito e foi ali que peguei."

Então suspeitou de uma traição do marido. Sérgio fez o teste anti-HIV, deu negativo. E o que deu também foi delegacia. Desconfiando de que Maria passeara na horta do outro lado da cerca, Sérgio passou a bater nela.

"Eu me ajoelhava aos pés dele e ele me chutava: ‘Sai daqui’. Fui espancada com barriga. Dei parte, ele ficou preso. Hoje vejo que ele tinha um pouco de razão", relembra Maria, sem se importar com a escadinha de filhos (10, 8, 6 e 4 anos) rondando a varanda do casebre simples, de madeira e três cômodos em 48 m².

Sentado na cadeira de plástico ao lado e cutucando a unha do dedão do pé esquerdo, Sérgio explica melhor: "Não era bem agressão. Eu xingava ela de aidética e outras coisas porque tinha me traído. Então ela vinha me dar um tapa - vê como ela é forte - e eu lhe dava uma porrada".

A temporada seguinte, a da espera pela morte, foi de resignação. Só que a vida, tinhosa, teimava em levar a realidade pro outro lado. Nem Maria nem os profissionais de saúde que a acompanhavam se davam conta disso. A filha nasceu, não foi amamentada no peito e tomou antirretroviral. Quando completou um ano, fez um teste anti-HIV: negativo.

Maria virava e mexia ia ao posto "pedir remédio pra tristeza" e, de seis em seis meses, para verificar sua carga viral. Foram 11 exames. Todos apontaram que havia pouco ou nenhum HIV nadando no seu sangue - o resultado caía sempre no "abaixo do limite mínimo detectável".

Em outro exame importante, o CD4, que conta os glóbulos brancos, Maria também sempre ficou fora dos padrões dos soropositivos. Nível abaixo de 350 células por mililitro indica geralmente que o HIV está fazendo seu estrago, aniquilando as defesas do corpo. Maria nem triscava. Bateu no mínimo de 554 em maio de 2004 e depois só subiu, extravasando os 1.300 em junho de 2008.

Sérgio refazia o anti-HIV e nada. Sempre negativo, mesmo com os maços de camisinhas jogados lá em cima do guarda-roupa do mesmo jeito que chegavam: fechados.

"Eu amo essa mulher. Se é pra morrer, morremos os dois", justificava para si mesmo.

Em agosto de 2005, Maria descobriu que estava grávida mais uma vez, a sexta em sua vida, a quarta com Sérgio. Precisou retomar o tratamento com o coquetel, para evitar a transmissão do vírus ao bebê.

"Ganhamos um esculacho da Vera e mais uma porção de camisinhas", conta Sérgio. "Ela dizia ‘mas onde é que vocês estão com a cabeça?!’", completa Maria.

Com a cabeça na senhora da foice, Sérgio, que havia anos tentava afogar a falência nos negócios em um copo de pinga, diz que se achegou à cocaína e ao crack.

"Fui bem de vida, sabe? Tive cinco automóveis de uma vez, uma fabriquinha de roupas e uma loja em Ponta Grossa", ele começa. "Perdi tudo quando o dólar subiu de R$ 1 para R$ 1,90. Aí vem a notícia de que minha mulher está com aids... Se põe no meu lugar."

Até uma herança de R$ 300 mil em terras que recebeu com a morte do pai ele diz que cheirou. Sobrou só para comprar um chão e nele erguer duas casinhas de madeira. Numa ele mora com Maria e as crianças. Da outra tira R$ 1.000 em aluguel para sustentar a família.

Maria procurou emprego duas vezes, em malharia e restaurante. Mas desistiu quando lhe pediram exames médicos de admissão. Também se pôs a imaginar o que seria se cortasse a mão com uma tesoura ou uma faca e achou melhor se isolar em casa, sem oferecer perigo a ninguém.

Passava o tempo na frente da televisão ou lendo um livreto chamado "Pequeno Manual de Instrução para a Vida (vol. 2) - 529 Sugestões, Observações e Lembretes para se Levar uma Vida Boa e Gratificante", da lavra de um tal H. Jackson Brown Jr.

Um aperitivo: "Nunca compre a mesinha de centro na qual você não possa pôr os pés".

Maria gostava de se distrair com isso. Nas poucas vezes que saiu à rua foi visitar a mãe, doente de câncer. No dia em que ela expirou, segurou firme na mão de Maria e disse: "Tô morrendo, filha. Mas não fique triste, porque você também está e logo a gente se encontra".

A mãe e a filha mais velha de Maria, do primeiro casamento, eram as únicas pessoas, além de Sérgio, que sabiam que ela "era" soropositiva.

Quem descobriu o erro foi o médico Ricardo Freitas. Ele começou a trabalhar no SAE em 2008 e, estudando o prontuário de Maria, estranhou três coisas: ela só tomou antirretroviral em períodos curtos, nas duas gestações, e mesmo assim seus exames de carga viral e glóbulos brancos jamais pioraram; o marido não usava preservativo e nunca contraiu o vírus; Maria não fez o anti-HIV na segunda-gravidez.

Freitas suspeitou de um falso positivo para HIV, que pode ocorrer em gestantes por conta de variações hormonais e outras possíveis infecções. Ele então solicitou um novo teste em setembro: negativo. E mais um em outubro: negativo também.

Em novembro contou a boa nova e mostrou os resultados libertadores a Maria, mas notou que ela não vibrou.

"Aquele pedaço de papel não foi capaz de tirar o HIV dela, ficou impregnado", ele diz, sentado em uma cafeteria no centro de Brusque.

Ouvindo a conversa atrás do balcão, o jovem barista comenta: "E o tanto de remédio que ela tomou... Deve estar podre por dentro, né doutor?".

Freitas explica que, hoje, o coquetel não faz mal a quem não precisa dele.

Como metáfora, porém, a observação do barista vale um macchiato bem tirado: sim, Maria apodreceu por dentro.

Agora, de advogado, quer ser indenizada. "Vamos acionar judicialmente a prefeitura de Brusque por negligência e o Lacen, pelo diagnóstico errado", adianta o causídico Luís Gustavo de Santana, único ser humano visto de terno e gravata por aquele entre-morros de Santa Catarina.

Valores? Não sabe ainda, mas deixa escapar um "300 salários mínimos".

O diretor do Lacen, João Daniel Filho, afirma que o laboratório não errou e é praticamente impossível que tenha havido uma troca de amostras.

O proctologista Paulo Coppini, que acompanhou Maria no SAE até março de 2007, não quis dar entrevista. Por e-mail, seu advogado, Erial Haro, afirmou que a paciente apresentou "queda da imunidade em um período, o que seria um indício de que poderia estar ficando imunodeprimida".

Nem uma palavra sobre o fato de Coppini não ter repetido o anti-HIV pelo menos quando Maria engravidou pela segunda vez.

O busílis para a justiça vai ser descobrir se os dois exames que deram positivo foram feitos a partir de uma única amostra de sangue de Maria, ou com duas, colhidas em momentos diferentes, como manda o Ministério da Saúde.

A enfermeira Vera sustenta que fez o correto: duas amostras em dias diferentes. "E tivemos dois resultados positivos."

Maria garante que só tirou sangue uma vez antes de ouvir o "tu tens aids".

No prontuário de Maria não há registro do primeiro exame. "Está lá no SAE, podes procurar que tu achas", sugere Vera, enquanto corre de um lado a outro e fala grosso com as pessoas que formam uma fila imensa à sua frente na Unidade de Saúde Central de Brusque, seu novo emprego.

"Já procuramos e não encontramos nada", informou a psicóloga Giovana Toazza, nova coordenadora do SAE.

O episódio dona Maria criou um problemão para ela. Agora, boa parte dos seus 380 pacientes de aids querem refazer o teste anti-HIV.

Vai que o vírus sumiu. Ou nunca esteve lá, como em Maria.

Ela, que ironicamente não se dava a essas esperanças, continua sem saber se acordou ou continua no pesadelo. Ri quase nada, parece cansada e não consegue responder a um trivial "tudo bem?" com outro.

Diz sempre: "É... vamos levando como dá".

  

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