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Fim do leilão, começo da confusão
25/04/2010 - Denize Bacoccina, Guilherme Queiroz e Rodolfo Borges - ISTOÉ Dinheiro

Terra em transe. Cenas de um filme de Glauber Rocha. Brasília, um dia depois da festa de seus 50 anos, fede. Manifestantes do Greenpeace haviam despejado toneladas de esterco em frente à sede da Agência Nacional de Energia Elétrica. “Belo monte de merda”, diz a faixa de um ativista, sentado sobre a lama fétida.

Perto dali, os índios do Xingu, inflamados pela pregação de James Cameron, o cineasta de Avatar, tomam a paisagem com seus cocares, arcos e flechas. Em Altamira, no Pará, agricultores fecham estradas de uma região que será inundada pelas águas da terceira maior usina do mundo. Na comarca local, o juiz Antonio Carlos Almeida Campelo dispara uma liminar.

O leilão de Belo Monte está suspenso. Horas depois, a decisão é derrubada. Homens da Agência Brasileira de Investigação (Abin) telefonam para o juiz. Querem saber a que horas sai a próxima liminar – o juiz se sente intimidado, fala até em Estado policial. Num intervalo entre uma ordem judicial e outra, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) decide bancar a venda da usina.


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Os envelopes são abertos. “E o vencedor é...” Surpresa. O consórcio favorito, integrado pela construtora Andrade Gutierrez, pela Vale, por Furnas e pela Neonergia, um gigante do setor elétrico controlado pelos fundos de pensão estatais, oferece R$ 83 por megawatt/hora. É o preço mais alto e também a pior proposta – pelas regras do leilão, leva a usina quem oferecer o maior deságio.

“E o vencedor então é...” um grupo formado praticamente na véspera e liderado, no setor privado, pela construtora pernambucana Queiroz Galvão, que ofereceu R$ 78 por megawatt/hora. Mas não se ouvem fogos de artifício no Recife, sede da empreiteira. Aliás, onde será que está João Queiroz Galvão, presidente da empresa? Alguém o viu por aí, na sede da Aneel?

Descobre-se então que a Queiroz Galvão, a quarta maior empreiteira do País, não enviou ninguém para o leilão. Na verdade, mandou uma carta para a Chesf, estatal com a maior fatia do consórcio, uma participação de 49,9%, informando sua desistência. José Ailton de Lima, diretor da Chesf, sobe ao palco. “Eles pediram um tempo para pensar se continuam ou não”, diz ele. Ahhn? Como assim? O empresário que acaba de faturar a terceira maior usina do mundo pula fora do projeto. Terra em transe.

O leilão de Belo Monte, com cenas de surrealismo explícito, jogou algumas luzes sobre uma das empreiteiras mais discretas do cenário corporativo brasileiro: a Queiroz Galvão, que, nos últimos quatro anos, mais do que dobrou de tamanho no País, pulando de R$ 2 bilhões em receita para os atuais R$ 5,5 bilhões.

Conhecida no meio das grandes obras de infraestrutura, a empresa não possui a mesma notoriedade de suas concorrentes diretas, como Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez – seja pela cultura de discrição imposta desde sua origem em 1953, seja porque não participou dos grandes projetos de engenharia que marcaram o período entre meados dos anos 50 e o final da década de 70.

Sua história, porém, se parece em diversos pontos com a trajetória das outras grandes empreiteiras. A começar pela origem familiar. A Queiroz Galvão foi fundada por quatro irmãos como uma pequena empresa de engenharia com o capital arrecadado na venda de uma picape Chevrolet, um Ford 1949 e um Jipe 1948. Juntos, Antônio, Dário, João e Mário Queiroz Galvão fizeram no município de Limoeiro, no interior pernambucano, sua primeira obra pública: o sistema de abastecimento de água.

Com a pavimentação da estrada entre Goiana e Recife entraram na construção de estradas. E a partir da expansão da malha rodoviária nordestina, os irmãos buscaram novas oportunidades de negócios na região Sudeste ao transferir, em 1963, sua sede para o Rio de Janeiro. Mas foi só em 1980, depois de uma década em que as obras públicas puxaram o crescimento da empresa, que o grupo decidiu diversificar as áreas de atuação.

Em plena crise do petróleo criaram o braço de perfurações, o segundo ramo das atividades, que incluem o mercado imobiliário, siderurgia, engenharia ambiental e agropecuária. Em 1998, foram agrupados na holding que engloba 50 subsidiárias, com atuação nas áreas de construção civil, mercado imobiliário, siderurgia, óleo e gás, saneamento ambiental e agropecuária. Essa holding surgiu com a criação da Galvão Engenharia, em 1996, quando Mário Queiroz Galvão Filho, filho de Mário, um dos fundadores, deixou a empresa-mãe junto com alguns executivos.

Hoje, João Queiroz Galvão, que fica no Rio de Janeiro, é o homem à frente da empreiteira e mantém a mesma discrição que, junto com os irmãos, imprimiu ao grupo. Seu irmão, Antônio, dá expediente no Recife e os dois são os principais conselheiros do grupo – que não tem um presidente. João raramente aparece em cerimônias e eventos públicos, mas não se recusa a receber homenagens dirigidas a ele mesmo ou à corporação.

Na entrevista coletiva concedida após o leilão, ele foi uma ausência sentida. Especialmente porque aquele poderia ser seu momento de glória. Mas o que há por baixo de toda essa espuma? Como a Queiroz Galvão se tornou pivô e protagonista de um dos mais turbulentos negócios já vistos no Brasil em todos os tempos?

DINHEIRO ouviu representantes do consórcio vencedor, do governo, dos grupos rivais e da própria construtora pernambucana. E a história real, ainda não contada, é surpreendente. Revela uma teia de intrigas, de interesses e também um embate inédito entre o governo Lula e as maiores empreiteiras do País. Poucas semanas antes do leilão, dois consórcios estavam formados. Um, com a Andrade Gutierrez.

Outro, composto por Odebrecht e Camargo Corrêa. Apesar desse desenho, não haveria propriamente uma disputa por Belo Monte. Qualquer que fosse o vencedor, a obra de engenharia, a maior do Brasil nos próximos anos, seria repartida na seguinte proporção: 25% para a Camargo, 25% para a Odebrecht, 25% para a Andrade Gutierrez, 15% para a Queiroz Galvão e 10% para a OAS, reproduzindo, de certa forma, as proporções das cinco maiores construtoras do País.

E as empreiteiras avaliavam que a obra deveria custar R$ 30 bilhões. Às vésperas da disputa, Odebrecht e Camargo anunciam sua desistência – uma única proposta então seria oferecida, e o governo, que estimava um custo de R$ 19 bilhões para a obra, não teria alternativa. Ficaria refém das construtoras. “Era quase um estupro”, disse à DINHEIRO um ministro do governo Lula. Em Brasília, o presidente determina à Eletrobrás que organize a formação de outro consórcio.

E a Chesf, subsidiária da Eletronorte, começa a convidar algumas empreiteiras – o ex-ministro Delfim Netto, amigo do presidente Lula e consultor da Galvão Engenharia, uma empresa que também nasceu como dissidência da Queiroz Galvão, entra no circuito. E começa a falar com algumas das empreiteiras que participaram da maior obra de engenharia já realizada no Brasil: Itaipu, construída pelos militares, na década de 70. Discretamente, nomes como Mendes Júnior e Cetenco, que tiveram papel decisivo no projeto binacional de Itaipu, aproximam-se da Galvão Engenharia. Delfim Netto, então, garante ao governo que haverá concorrência.

Acende-se uma luz amarela na Queiroz Galvão. A empresa pernambucana, que antes tinha a garantia de executar 15% da obra, poderia ficar de fora de Belo Monte. Com relações próximas com a cúpula da Chesf, que é também sediada no Recife, a Queiroz Galvão ingressa no consórcio articulado às pressas pelo governo. E toma a maior fatia, entre as empresas do setor privado, ficando com 10% do grupo.

No entanto, João Queiroz Galvão faz um pedido que é interpretado, na Eletrobrás, como uma proposta indecente, e quase imoral – a Queiroz Galvão agora quer executar 80% das obras civis de Belo Monte. A Chesf nega a garantia. E, com a tarifa de R$ 78 por megawatt/hora, a construtora decide pular fora do projeto. Seria responsável por 10% do risco do empreendimento, numa obra que teria de ser executada com custos baixos e margens de lucro muito estreitas – e na qual ela teria participação diluída.

“Se eles quiserem voltar, é bom; mas o nosso desafio é fazer a construção no menor custo possível”, disse à DINHEIRO Dilton Conti, presidente da Chesf. Foi uma declaração moderada e até polida. O presidente Lula, no entanto, perdeu a paciência com as pressões exercidas pelas empreiteiras. E enviou um recado direto à Queiroz Galvão. “No leilão, entrou quem quis e sai quem quer depois. Não tem nenhum cadeado fechando a porta”, disse ele, na tarde da quinta-feira 22.

Depois disso, o discurso da Queiroz Galvão mudou. A empresa, que não se pronuncia oficialmente, agora quer voltar. E insinua que, no consórcio vencedor, é a mais experiente na construção de hidrelétricas. Não é exatamente verdade. As principais usinas construídas pela empreiteira pernambucana são as de Santa Clara, em Minas Gerais, Jauru, em Mato Grosso, e Quebra-Queixo, em Santa Catarina.

Geram 60, 118 e 120 megawatts, respectivamente, sendo nanicas se comparadas ao projeto do rio Xingu, com potência instalada de 11,2 mil megawatts – inferior apenas que a capacidade de Três Gargantas, na China, e de Itaipu, no Brasil e no Paraguai. Fora do Brasil, a Queiroz Galvão é responsável pelas obras da hidrelétrica de La Higuera, no Chile, que é também pequena e produzirá 155 megawatts.

Na realidade, a Queiroz Galvão é muito forte em outras áreas, como construções de estradas (ela foi uma das principais empreiteiras do Rodoanel paulista), de metrôs e também de obras no setor de óleo e gás. Numa outra declaração o presidente Lula também se mostrou despreocupado em relação à execução do projeto. “Belo Monte será construída pelas barrageiras dos novos tempos”, disse ele.

Na verdade, nem tanto dos “novos tempos”. Até a década de 50, as principais hidrelétricas do Brasil eram construídas por empresas norte-americanas e canadenses, como Bechtel e Morrison Knudsen. Furnas, idealizada por Juscelino Kubitschek, foi a primeira grande barragem genuinamente brasileira, uma obra executada pela Mendes Júnior, que também participou de Itaipu, assim como a Cetenco. Relativamente novatas no setor, efetivamente, são apenas a Gaia Engenharia e a Contern, que pertencem ao grupo Bertin, assim como a paranaense J.

Malucelli, que ameaçou sair do consórcio, mas acabou ficando. “Belo Monte é um sonho, o maior projeto da história da empresa”, disse à DINHEIRO o presidente do grupo Joel Malucelli. Outro integrante do consórcio, a Serveng-Civilsan, também tem relativa tradição em hidrelétricas – e é uma das maiores concessionárias de estradas do País, fazendo parte do controle da CCR.

O desafio do governo, agora, é fortalecer a posição financeira do consórcio Norte Energia, que venceu o leilão. É provável que fundos de pensão estatais entrem no grupo, o que gerou críticas generalizadas sobre uma “estatização” de Belo Monte. No entanto, as fundações, ainda que sujeitas a influências políticas, são entidades privadas que pertencem aos seus cotistas. E têm uma vantagem em relação a outros investidores. Buscam retornos de longo prazo, que sejam estáveis e conservadores.

A meta atuarial dos principais fundos de pensão no Brasil é de 5,5% ao ano, inferior à taxa interna de retorno de Belo Monte, que foi fixada em 8% pelo governo – as grandes empreiteiras defendiam uma taxa de 12%. O BNDES também já anunciou que irá financiar mais de 80% da obra. E o governo Lula já demonstrou não ligar muito para as críticas sobre a atuação do setor público. “Se ninguém quiser, o Estado faz sozinho”, disse ele. “Outras empresas podem até querer voltar ou entrar, mas a regra será o menor preço”, garantiu à DINHEIRO a ministra da Casa Civil, Erenice Guerra.

Belo Monte é também uma obra submetida ao calendário eleitoral. Faz parte do Programa de Aceleração do Crescimento, que é a principal bandeira da ministra Dilma Rousseff. Ela garante que a nova usina, com capacidade firme de para gerar mais de 4 mil megawatts durante todos os meses do ano, o suficiente para abastecer 22 milhões de pessoas, definitivamente livra o País do risco de novos apagões. E o aumento da oferta de energia é também essencial para um país que pretende continuar crescendo 5% ao ano.

“A alternativa a Belo Monte seria queimar carvão e gerar energia térmica, bem mais poluente”, argumenta Maurício Tolmasquim, presidente da EPE, a Empresa de Pesquisa Energética. O curioso é que essa obra tinha tudo para ser um marco na história da Queiroz Galvão. Uma empreiteira que poderia se consolidar de vez no primeiro time da engenharia no Brasil, mas que sai do episódio com sua imagem arranhada.

  

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