Para ver o problema de perto, um repórter e um fotógrafo da Reuters pegaram carona com Mendonça numa viagem recente. O caminhoneiro de 27 anos, pai de dois filhos e fã de música sertaneja, trabalha para uma cooperativa de frete e faz bico como instrutor para futuros colegas.
"Que Deus nos proteja", disse ele, com a voz impondo-se a um chiado do freio a ar do seu veÃculo.
A reportagem seguiu com o veÃculo por 1.600 dos 2.100 quilômetros da viagem, percorrendo muito asfalto danificado, lembranças de acidentes mortais e refúgios noturnos com espaço para um último caminhão.
O custo do frete nessa viagem representou quase 40 por cento do valor pelo qual a carga de 37 toneladas de milho foi negociada em Santos. Para percorrer uma distância semelhante nos EUA, principalmente sobre barcaças, o custo seria de apenas 10 por cento do valor da carga.
"A logÃstica está congestionada", disse Glauber Silveira, produtor de Mato Grosso, presidente da associação dos sojicultores do Brasil, que perdem um quarto do seu faturamento com o transporte. "O comprador está perdendo, e o produtor está perdendo."
Por causa dessa elevação de custos, os negociantes de produtos agrÃcolas estão sendo obrigados a pagar mais pela soja brasileira só para garantir a continuidade das lavouras. Caso os preços se aproximem demais do custo, isso "irá desincentivar seriamente a produção brasileira", segundo Kona Haque, analista do Macquarie Bank.
Da cabine do caminhão Scania de Mendonça, descortina-se uma visão privilegiada do abismo que separa as ambições de primeiro mundo do Brasil das condições bem mais modestas da vida real.
Cada trem da companhia, com 80 vagões, pode transportar o equivalente a 230 caminhões articulados como o de Mendonça, mas consumindo o mesmo diesel que apenas 40 carretas. No entanto, a demanda elevada depois da safra faz com que os trens fiquem lotados, e os preços não compensam muito, segundo produtores.
Os economistas têm dificuldades para quantificar o impacto da infraestrutura precária sobre a economia, mas concordam que as limitações na rede de transportes e a saturação dos portos impedem a economia de crescer consistentemente acima de 4 por cento ao ano, taxa que a maioria dos economistas considera que seria necessária para que o Brasil alcançasse o status de nação desenvolvida.
A maioria dos novos projetos ferroviários ainda está a pelo menos cinco anos da conclusão.
NA BOLEIA
E assim Mendonça seguiu viagem. Antes da meia-noite, ele parou num posto com área de descanso. Mendonça dormiu num colchão no fundo da cabine. Repórter e fotógrafo se viraram com um banco e uma rede.
Na terça-feira, o veÃculo chegou à divisa com Mato Grosso do Sul. O voo de um tucano e um bando de emas quebravam a monotonia da paisagem plana e marrom dos campos na entressafra.
"Não há banheiros nem áreas de descanso decentes, e a poeira está por todo lado", queixou-se o caminhoneiro Aguinaldo da Silva Tenório, de 28 anos, numa parada do trajeto. Ao seu lado viajam sua mulher, sua filha de três anos e um filho de um mês. Levá-los consigo foi "a única opção" para poder ficar com a famÃlia.
Viajando pelo Mato Grosso do Sul, Mendonça apontou o local onde um motorista bêbado bateu o seu caminhão, num acidente que matou a namorada do condutor do carro.
"Quando você está sonolento, resolve, mas você pode acabar causando uma grande confusão", diz o caminhoneiro Ademir Pereira, de 36 anos, que admitiu ter usado "rebite" uma vez. Mendonça diz que nunca consome drogas para ficar acordado.
OLHOS ABERTOS
Mais de 1.200 caminhoneiros morreram no ano passado em rodovias federais, segundo dados da PolÃcia Rodoviária Federal. Para reduzir o consumo de drogas ao volante e diminuir o número de vÃtimas, o governo recentemente determinou pela primeira vez um perÃodo mÃnimo de descanso para os caminhoneiros.
Motoristas contratados por empresas, que são a maioria, agora devem passar no máximo oito horas por dia ao volante. Para os autônomos, a jornada pode chegar a 13 horas.
Na terça-feira à noite, Mendonça dormiu em outra área de descanso. Ao meio-dia de quarta, ele parou em um restaurante já no norte do Estado de São Paulo.
Lá, uma funcionária elogiou a nova lei.
"Antes, a gente via os caminhoneiros entrando aqui com os olhos quase fechados", disse Nilda Pereira Alves Pinto, que opera o aparelho de radioamador do restaurante, promovendo suas porções de arroz e feijão para os motoristas nos arredores. "Agora eles não ficam mais com tanta pressa."
Poucos discordam dos motivos da lei, mas alguns se queixam de que está mais difÃcil cumprir prazos, e que os custos aumentaram. "Se não nos deixarem dirigir durante a noite, não haverá caminhões suficientes", disse o caminhoneiro autônomo Marcelo Galbati, que esperava o conserto de um pneu.
A falta de áreas de descanso ficou dolorosamente clara. Mendonça pagou um pedágio de 150 reais, mas precisou dar uma volta e pagar de novo depois de descobrir que todas as áreas de descanso estavam cheias. Ele já havia ultrapassado a jornada de trabalho máxima, mas não tinha onde parar.
Às 2h, quando o caminhão descia a serra em meio à Mata Atlântica, um acidente paralisou a rodovia. Uma hora depois, o veÃculo chegou a uma parada de descanso.
"A coisa está feia", disse uma atendente, acenando para que Mendonça tentasse a sorte buscando uma vaga para estacionar, após 20 horas ao volante.
Só na manhã de sexta-feira, quase uma semana depois de deixar Rondonópolis, Mendonça conseguiu finalmente levar o caminhão para uma plataforma e descarregá-lo, a poucos metros dos navios que iam sendo enchidos com grãos com destino a outros continentes.
O valor da carga de 37 toneladas: 10.200 dólares. O custo do frete: 3.800 dólares.