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O amor nos tempos do Mais Médicos
21/06/2015 - Felipe Frazão - VEJA

Há nove meses, a farmacêutica Letícia Santos Pedroso e o médico generalista Adrian Estrada Barber esperam uma mudança em suas vidas.

Noivos, eles já moram juntos e planejam ter filhos, mas primeiro querem se casar.

Desde o dia 19 de setembro do ano passado, os dois passam vivem a angústia da indefinição sobre o pedido de união do casal.


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Aos 42 anos, a brasileira conheceu "o cara que sonhou para si" em Arapoti, pequena cidade de 27.000 habitantes no interior do Paraná.

Recém-chegado ao Brasil na primeira viagem internacional que fez, o cubano de 28 anos embarcou para trabalhar no programa do governo federal Mais Médicos, que ajuda a financiar a decadente ditatura dos irmãos Castro.

E foi por isso que o matrimônio emperrou na Justiça.

Cuba, como se sabe, controla liberdades individuais e a circulação de informações dentro da ilha.

Também monitora de maneira invasiva seus enviados em missões oficiais como a dos médicos intercambistas.

Foi assim na Bolívia e na Venezuela. É assim no Brasil.

A venda de serviços médicos, intermediados pela Organização Pan-americana da Saúde (Opas), começa com um contrato particular assinado pelo profissional cubano com a Comercializadora de Serviços Médicos Cubanos (CSMC) SA, estatal controlada pelo Ministério da Saúde Pública castrista.

O contrato restringe relacionamentos amorosos e proíbe o casamento com brasileiras sem anuência e autorização por escrito de um superior cubano.
De acordo com a Justiça do Paraná, a oficial do Cartório de Registro Civil impugnou o pedido de casamento suscitando o impedimento de Adrian.

O juiz Marco Antônio Azevedo Júnior questionou se era o responsável por julgar o pedido, por causa do vínculo do cubano com o programa federal.

A Justiça Federal analisou também analisou o caso e declinou da competência.

No último dia 27 de maio, os ministros da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça decidiram por unanimidade reconhecer a competência da Vara Cível da Justiça de Arapoti para atuar no processo, conforme revelou o Radar On-line.

"Nós achávamos que seria uma via mais rápida. Foi bem angustiante para nós dois, já levou nove meses e ainda estamos esperando uma decisão processo", disse o cubano ao site de VEJA.

"O contrato que eu tenho não fala nada que eu não posso me casar."

De fato, o contrato dos cubanos tem uma restrição implícita.

Um das cláusulas diz expressamente que os cubanos em missão no exterior devem "cumprir a lei de Cuba para o matrimônio com estrangeiros", sem ser dispensado de cumprir as demais obrigações do Mais Médicos -- salvo se autorizado previamente pela "direção máxima da missão médica cubana no Brasil".

O Código da Família, que regra o matrimônio em Cuba, só admite, por exemplo, a comunhão de bens.

A norma para casamentos de colaboradores do governo cubano no exterior é a resolução 168, de 2010, do Ministério do Comércio Exterior e Investimento Estrangeiro de Cuba.

Diz o texto:

"É dever dos médicos cubanos informar ao chefe imediato superior sobre suas relações amorosas com cubanas ou estrangeiras, residentes ou não no país onde prestam colaboração, a tempo de eles serem consultados sobre a intenção de se casarem no país em que prestam serviços".

A desobediência é considerada infração disciplinar relacionada ao prestígio e à conduta social e pode ser punida com advertência, multa de até 20% do salário anual, transferência de cidade, demissão e expulsão do Mais Médicos, com imediata volta a Cuba -- o médico ficaria impedido de participar de novos programas por dez anos.

O procurador do Trabalho Sebastião Vieira Caixeta, autor de ação civil sobre violações às normas trabalhistas nacionais no Mais Médicos, afirma que a proibição implícita não pode ser validada no país.

Na ação, ele pede que a cláusula seja declarada ineficaz.

"Há uma diretriz do governo cubano que restringe o relacionamento deles com não cubanos. Isso sem dúvida nenhuma é uma restrição indevida em nosso ordenamento jurídico. Não há uma ordem explícita de que é proibido, mas fica muito claro que é uma restrição. A sinalização desse documento é de que não deveria haver relacionamento. Essa restrição é incompatível no nosso direito nacional e não vale dentro do Brasil. O Brasil não acolhe esse tipo de restrição. Não sei como isso poderia emperrar o casamento."

O entendimento é semelhante ao do procurador da República Osvaldo Sowek Junior, de Ponta Grossa (PR), que deu parecer no caso de Letícia e Adrian.

"Trata-se de um contrato celebrado entre a 'Comercializadora de Serviços Médicos Cubanos S.A., constituída como sociedade mercantil e a pessoa física de Adrian Estrada Barber; é um acordo eminentemente privado, cujo descumprimento gera efeitos somente para as partes", escreveu.

A advogada Maristela Basto, especialista em Direito Internacional, afirma que o casamento não pode ser impedido. Segundo ela, a cláusula "não tem qualquer efeito sobre a validade do casamento civil" e "provavelmente pode ser anulada porque viola direitos fundamentais das pessoas".

Maristela ainda diz que Adrian poderá regularizar sua situação no país após casado com Letícia.

"O fato de o STJ ter entendido que a restrição é particular entre ele e a empresa cubana que recruta os médicos e que, se casar sem aval, estaria rompendo um contrato particular e estaria sujeito a sanções disciplinares, não o impede de casar validamente no Brasil e ter direito ao regime de obtenção de visto permanente e até à cidadania brasileira, prevista na Constituição Federal."

Encontro

Segundo o relator do processo de no STJ, ministro Raul Araujo, a lei do Mais Médicos diz que "os participantes no programa estão submetidos à legislação brasileira no que se refere às suas responsabilidades civis e penais".

Essa é a esperança do casal, que agora espera a decisão da Justiça paranaense. Desde a última segunda, o processo foi remetido para a comarca de Arapoti. Quase um ano depois de um amigo do casal cumprir o papel de cupido entre eles.

Um amigo de Letícia conheceu Adrian cerca de quinze dias depois da chegada dele a Arapoti em abril do ano passado.

Atração na cidade, levou o cubano para conhecer amigas solteiras e fez um visita na farmácia de Letícia.

"Nós ficamos conversando ali na farmácia mesmo e depois ele pegou meu telefone e ficou me mandando mensagens", conta ela.

"Ele queria enturmar o Adrian na cidade, mas ele era bem tranquilo e introvertido. Tivemos uma empatia, saímos para tomar um café, afinamos os pensamentos e logo de cara ficamos juntos. Em poucos minutos de conversa eu pensei: é esse o cara que eu sonhei para mim".

Em julho, dois meses após o início do romance, Adrian pediu Letícia em noivado durante um churrasco na chácara de um tio dela.

"No início, ela não queria me dar bola, mas achei ela uma mulher muito bonita, interessante e comunicativa", conta ele.

"Não sei qual era a intenção dele quando chegou no Brasil, mas hoje, para mim e para minha família toda, ninguém tem duvidas do amor dele por mim e do meu por ele", diz ela.

Adrian Barber é um dos dois cubanos enviados pelo governo Dilma Rousseff ao prefeito de Arapoti, Braz Rizzi (DEM).

Da bolsa 10.000 reais, recebe 2.976 reais o restante fica com a Opas (uma comissão) e com o governo Raúl Castro.

Especialista em medicina da família, estudou na escola universitária do Hospital Salvador Allende e participa de sua primeira missão no exterior.

O cubano trabalha por 40 horas semanais no posto de saúde Vila Romana, uma unidade para atendimento básico ambulatorial.

Morava em uma quitinete antes de se mudar para a casa de Letícia.

Antes de chegar à pequena cidade, passou cerca de quinze dias em Curitiba e um mês em Brasília.

Letícia e Adrian temem exposição pública e retaliações dos chefes da delegação cubana no Brasil -- são 28 supervisores de confiança dos irmãos Castro espalhados pelo país.

O casal alega não ter informações claras sobre a proibição ao casamento.

Mas dizem que não foram questionados sobre o namoro por autoridades brasileiras nem cubanas ligadas ao Mais Médicos.

"É tanto misticismo que existe em torno desse programa que a gente fica com medo que o governo cubano peça para ele voltar para Cuba porque ele quer continuar no programa e concluir os três anos dele. A gente só quer casar. A gente só quer o direito humano de casar", diz Letícia.

"Ele tem pai e mãe e quer ter a liberdade de todo ano poder visitar os pais em Cuba pelo programa."

Os pais de Adrian, Maria Milagros e José Maria, já têm mais de 60 anos e moram sozinhos em um prédio residencial em Cerro, bairro de Havana, nos arredores do emblemático Estádio Latino-americano de Beisebol e próximo à Plaza de La Revolución.

Eles se comunicam semanalmente por e-mail e telefone.

Os pais ainda não conseguiram visitar o filho no Brasil -- Cuba permite três meses de viagem de famiiares.

Mas ajudaram a enviar para o Brasil a documentação para o casamento, uma certidão de nascimento e um certificado de solteirice do filho.

A papelada foi chegou pelo correio e não sofreu restrições do regime.

Em março, Letícia e a mãe, Shirley Santos Pedroso, viajaram pela primeira vez para fora do Brasil.

Passaram quinze dias em Havana para conhecer a família do noivo.

Passearam também pelas praias de Varadero e Cayo Santa María.

As restrições de comércio e acesso à variedade de produtos, porém, impressionaram Letícia negativamente.

"É o lugar perfeito para levar as namoradas porque não tem onde gastar", brinca ela.

"A gente quer ficar junto onde quer que seja, no Brasil ou em Cuba", conta ela, que cogita tentar viver na ilha caribenha caso não consiga um final feliz.

"Não sei se eu aguentaria viver lá por causa das limitações. Ele até brincou: 'acho que você não resiste dois meses em Cuba'".

Letícia e Adrian negam que o enlace seja uma negociata para que ele consiga o visto permanente no Brasil e possa viver aqui.

Ambos se dizem indignados com insinuações do tipo.

Se for desvinculado do Mais Médicos, ele não poderá exercer a medicina sem passar pelo exame Revalida, aplicado a médicos formados no exterior, mas isento para o programa federal.

Se for considerado desertor, poderia sofrer sanções ao tentar regressar ao país.

Por enquanto, eles vivem com a incerteza de ele ter de voltar a Cuba a qualquer momento -- ou com o fim do Mais Médicos, já que o visto de Adrian expira em 2017.

"Prefiro morar onde nós dois ficamos legais e juntos, mas ainda não conversamos sobre o que faríamos nesse caso", diz o cubano.

"O nosso casamento não é comprado como o de muitos brasileiros que querem ir para os Estados Unidos. Não é o nosso caso. Nossa intenção é ficar junto em qualquer lugar. Ele tem uma missão aqui no Brasil de tempo determinado, de três anos, mas o nosso sentimento não tem prazo de validade", diz a brasileira.


  

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