Pouco mais de dois anos depois, em setembro de 2015, o rebaixamento da nota do Brasil ao grau especulativo foi anunciado pela Standard&Poor’s, principal agência de avaliação de risco soberano.
O primeiro “ponto de preocupação†era “o risco de ‘downgrade’ e seus impactosâ€.
Os seguintes, a polÃtica fiscal e suas consequências; a imagem do Tesouro; e o aperfeiçoamento de processos internos.
Por último, o “relacionamento interpessoalâ€, uma forma educada de se referir à s explosões pelas quais o secretário Arno Augustin era evitado por sua equipe.
Naquele momento, quando a burocracia do Tesouro Nacional alertava para uma trajetória fiscal arriscada, a economia brasileira ainda era comandada pela “nova matriz macroeconômicaâ€, definida por um câmbio artificialmente desvalorizado, juros reduzidos na marra e polÃticas anticÃclicas de subsÃdios e desonerações setoriais.
O Banco Central (BC) fora forçado a retomar os aumentos da Selic em abril para combater uma inflação que caminhava para o teto da meta, apesar do represamento das tarifas públicas.
No front externo, o banco central dos EUA começara a retirar os estÃmulos monetários que vinha injetando na economia americana, o que prometia reduzir a abundância de capitais para paÃses emergentes como o Brasil.
Coube a ele o alerta de que a polÃtica fiscal já entrava numa trajetória insustentável.
Quando foi apresentado o sexto slide com um gráfico que mostrava como o mercado vinha perdendo a referência de qual era a meta fiscal perseguida pelo governo, Arno deixou claro que havia convocado a reunião para pôr fim ao que considerava uma rebelião contra a polÃtica econômica e não para tratar de cenários fiscais.
Enquanto Ladeira expunha a dificuldade de o governo atingir a meta de superávit primário de 2,3% do PIB em 2013, o secretário interrompeu:
“Quem disse que não vamos cumprir a meta? O mercado pode projetar qualquer coisa. Eles fazem isso o tempo todo para ganhar dinheiroâ€, disse.
Arno matou no peito: cada um deveria escrever exatamente o que considerava correto e necessário.
Se ele discordasse, faria um despacho contrário, decidindo como achasse adequado.
Mesmo os mais crÃticos reconheceram naquela atitude a coragem do ex-secretário em assumir pessoalmente as decisões polêmicas.
A coordenadora-geral de Gerenciamento de Fundos e Operações Fiscais, Maria Carmozita Bessa Maia, foi escalada para falar das relações interpessoais.
O temperamento do secretário pautava de tal forma a relação com os subordinados que funcionários cogitaram uma ação coletiva por danos morais, que nunca foi adiante.
Para espanto de muitos, essa foi a parte mais leve de toda a reunião.
“É a única coisa que eu concordo com vocêsâ€, disse um Arno entre contrito e engraçado.
Reconheceu que às vezes passava do limite e prometeu tentar domar o gênio.
Depois dos funcionários, foi a vez de Arno fazer uma apresentação.
Os subsÃdios, por exemplo, traziam retornos ao paÃs.
Exibindo um gráfico em que a taxa de investimento foi combinada à liberação de dinheiro subsidiado para o BNDES, Arno argumentou que sem o Programa de Sustentação do Investimento (PSI) a formação bruta de capital fixo do Brasil poderia ter caÃdo para 13% do PIB.
Quando a reunião vazou para a imprensa, Arno chamou os subsecretários a seu gabinete e, ignorando a promessa de domar o gênio, quis saber quem era o autor do vazamento.
Ameaçou abrir processos disciplinares contra todos que “ficaram aà circulando essa apresentaçãoâ€.
O ex-secretário desistiu da retaliação por concluir que daria mais combustÃvel ao “motimâ€.
Mas preparou o Tesouro para enfrentar as eleições de 2014 sob o mais estrito sigilo e com a polÃtica fiscal sob seu absoluto controle.
“Na primeira reunião para discutir qualquer assunto importante, várias pessoas falavam. Na segunda, menos gente. Da terceira em diante, a impressão era que não adiantava nada fazer ponderações. E aà quem discordava preferia ficar calado e deixar a presidente decidirâ€, conta um ex-ministro.
“É um governo de muitas certezas e quase nenhuma dúvidaâ€, complementa outra autoridade do alto escalão.
No primeiro ano do mandato da presidente, durante as discussões para a privatização dos aeroportos de Guarulhos, Viracopos (Campinas) e Natal, essa dinâmica ficou clara.
A definição da taxa de crescimento do PIB que embasaria os cenários econômicos da concessão se transformou em um embate ideológico entre a ala desenvolvimentista radical — representada pelo secretário do Tesouro e a então ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann — e o resto do governo. Procurada pelo Valor, a ex-ministra não retornou às ligações.
Arno não aceitava usar um percentual para o crescimento do PIB durante os 20 ou 30 anos do perÃodo de concessão que fosse diferente da projeção oficial de crescimento de 4,5% ao ano em 2011.
Não foi convencido nem mesmo pela evidência de que em dez anos essa projeção transformaria o aeroporto de BrasÃlia, que no ano passado transportou 18,1 milhões de passageiros por ano, em um dos maiores do mundo.
“Vocês são uns pessimistas. Não acreditam no futuro do paÃsâ€, disse.
O problema, conforme descrição da ministra Gleisi, era que a alimentação, muito cara, não podia ser um empecilho às viagens dos eleitores da classe C que haviam passado a frequentar os aeroportos.
A solução foi uma licitação em que as lanchonetes pagam aluguel abaixo do preço de mercado e oferecem um cardápio com 15 itens a preços mais baixos.
Em Congonhas, o pão de queijo custava R$ 2,50 na tabela subsidiada de fins de outubro e R$ 5,00 nos demais estabelecimentos.
Arno passou, então, a ser visto pelos colegas de governo como a voz da chefe nas discussões internas.
Ele sempre tratou a presidente Dilma como ela gosta de ser chamada, por “presidentaâ€.
Integrantes do governo, no entanto, descrevem cenas pitorescas que mostram a proximidade dos dois.
Em uma delas, o ex-secretário do Tesouro teve que se ausentar da sala de reunião para cumprir uma ordem de Dilma:
“Arno, seu cabelo está desarrumado, vá lá arrumarâ€.
Nas entrevistas feitas pelo Valor para esta reportagem, Arno foi comumente descrito como “um homem de partidoâ€, “um soldadoâ€, “um cumpridor de tarefasâ€.
“A presidente decidia e ele entregavaâ€, descreve uma autoridade que trabalhou com os dois.
Essa determinação ficava ainda mais visÃvel nas ocasiões em que, derrotado, não hesitou em implementar o que foi deliberado.
Segundo depoimento ao Valor, o ex-secretário tratava as agências de rating como um instrumento “usado pelos paÃses ricos para impedir polÃticas de desenvolvimento†de paÃses pobres.
A participação de 49% da estatal Infraero nos aeroportos privatizados foi definida pela necessidade de “o governo participar do dia a dia da empresa†porque o governo considerava as agências reguladoras instrumentos ineficazes de supervisão.
Com o ministro Guido Mantega, Arno formou uma dupla curiosa: ele nunca desautorizou o chefe, apesar de ambos saberem que o secretário do Tesouro tinha voo próprio e respondia diretamente à presidente.
Quando a economia começou a dar sinais de desaquecimento em 2012, a resposta do governo veio na forma de mais e maiores estÃmulos anticÃclicos.