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Acabou a neutralidade da rede. É o fim da internet como a conhecemos?
17/12/2017 - REVISTA ÉPOCA

Ajit Pai é o republicano mais odiado do Twitter nesta semana. Ou o segundo. O primeiro lugar é cativo de Donald Trump – que nomeou Pai como presidente da Comissão Federal de Comunicações (FCC, na sigla em inglês), órgão regulador de telecomunicações dos Estados Unidos.

O filho de imigrantes indianos, de 44 anos, parece ter mais jogo de cintura para as críticas do que o presidente americano. Pai tenta usar as ofensas a seu favor.

Um dos alvos de deboche do público é a caneca gigante com a logomarca da Reese’s, uma marca de chocolate com pasta de amendoim, que ele carrega em aparições oficiais e entrevistas.


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Em vez de mostrar irritação com os memes, rebate com um vídeo no YouTube em que comenta parte dos tuítes ácidos que tem recebido.

Em uma réplica jocosa, leva à boca uma caneca da Reese’s gigantesca, do tamanho de seu tronco. Ao fim do vídeo, agradece aos haters e dá uma piscada.

Enquanto faz graça, porém, o executivo ameaça um princípio fundamental da internet como a conhecemos.

Pai colocou em votação e conseguiu que a comissão decidisse, por três votos a dois, parar de defender um dos pilares da internet aberta: a neutralidade da rede, imposta como norma pelo governo de Barack Obama.

A partir da votação na quinta-­feira, 14, o Congresso tem dois meses para avaliar a decisão. Prevê-se uma guerra jurídica nas semanas à frente.

Debate-se tal princípio nos Estados Unidos desde a era pré-internet, quando o tema era telefonia fixa.

Só em 2003, depois de um artigo escrito pelo professor Tim Wu, da Escola de Direito da Universidade Columbia, o termo se consolidou e ganhou status de diretriz ideal para o uso da internet no mundo.

Quase 50 países adotam a regra, que determina isonomia no tratamento de dados pelas empresas provedoras de conexão.

A neutralidade da rede estipula que todo conteúdo trafegue com a mesma velocidade – uma música é transmitida mais facilmente que um filme, mas apenas por seu tamanho, e não porque o site de músicas tenha um acordo com o provedor.

Com a neutralidade, nenhum site, serviço ou aplicativo usufrui de maior rapidez ou de privilégios.

Isso dá ao usuário poder de decisão sobre qual informação disponível na rede ele quer acessar.

A FCC mantém esse princípio há 15 anos.

Tom Wheeler, o cabeça anterior da entidade, entendia a neutralidade como benéfica para a economia americana. Ajit Pai diz enxergar sua abolição como uma restauração de liberdade concorrencial no setor.

Quase 30% dos americanos não têm acesso à banda larga em casa. O problema não é de falta de infraestrutura, como no Brasil.

Uma pesquisa da Pew Research Center detectou que o empecilho é o alto custo dos pacotes oferecidos.

Com o fim da exigência de neutralidade, a FCC libera as operadoras a propor planos de internet que priorizem o acesso a certo conteúdo ou serviço em detrimento de outro.

A ideia é que um usuário de uma zona remota, que conta com poucas alternativas (já que as companhias não veem retorno financeiro em investir no local), tenha a opção de pagar por um plano com acesso só a um serviço – Facebook ou Netflix, por exemplo.

Ele estará conectado ao que as operadoras decidirem ofertar na área.

O discurso é que essa prática estimula a concorrência. Mas é comum que os mesmos grupos incluam operadoras de telecomunicações e produtores de conteú­do.

Sem a exigência de neutralidade, a operadora – a dona da infraestrutura – tem incentivo para dar vantagem ao conteúdo produzido por seu próprio grupo e para discriminar o do competidor.

A diversidade de acesso será proporcional ao bolso do consumidor. A internet funcionará como um espaço estratificado.

A Electronic Frontier Foundation (EFF) é uma das entidades que encabeçam a luta pela manutenção da neutralidade da rede e por outros valores não exclusivamente econômicos na internet desde a década de 1990.

Rebate o argumento da defesa da concorrência com um dado do atual mercado de banda larga, distante do idea­lizado pela teoria: nove de cada dez americanos vivem em monopólio ou duopólio de banda larga.

Kit Walsh, doutora em Direto pela Universidade Harvard e ativista da EFF, destaca que as companhias de hoje, com seus direitos renovados pelo governo para a transmissão em cabos, em antenas e no espectro eletromagnético tendem a conseguir oferecer serviço mais barato do que os novos participantes, que precisarão construir estruturas e obter direitos a partir do zero.

“Combine isso com o acesso pouco confiável dos clientes a informações sobre a qualidade do serviço e de velocidades de banda larga e você terá um mercado que não será competitivo, a não ser com intervenção”, diz Kit em artigo.

Ela entende que uma das saídas é obrigar que grandes companhias permitam a operação de novas empresas em sua estrutura.

A discussão não é exclusiva dos Estados Unidos.

O conflito econômico básico da internet está entre encará-la como uma estrutura de interesse público, fundamental para a circulação de informação, ou como infraestrutura de telecomunicações sob lógica empresarial.

Entre os efeitos possíveis da nova decisão, especialistas apontam para riscos à liberdade de expressão, à privacidade e à inovação – não somente nos Estados Unidos.

Luca Belli, pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV e autor de livros sobre neutralidade e regulação na internet, aponta para consequências diretas e indiretas da mudança no Brasil.

Startups americanas, sem o peso necessário para negociar acordos com operadoras, podem enfrentar dificuldade para lançar novos produtos que chegariam aqui.

O impacto indireto é que o país se espelha em regras dos Estados Unidos e da Europa.

“É muito provável que, a partir de hoje, operadoras no Brasil queiram desregular a neutralidade e seguir o modelo de lá”, diz.

No Brasil, a neutralidade está contemplada no Marco Civil da Internet e no decreto que o regulamenta, de 2016.

Apesar de nossa lei ser elogiada por pioneiros consagrados da internet, como Tim Berners-Lee, inventor da World Wide Web (a interface e lógica de navegação com que estamos habituados ao usar a internet), isso não salva o país de ameaças.

Assim como nos Estados Unidos, as companhias reclamam dos altos impostos e dos desafios financeiros para investir em expansão.

Yasodara Córdova, pesquisadora da Digital Kennedy School, de Harvard, usa como bom exemplo da relevância da neutralidade o que ocorre na rede móvel no Brasil.

Ela se refere à prática de zero rating, que dá ao usuário a possibilidade de comprar um celular pré-­pago e receber, de graça, acesso a alguns serviços, como Facebook e WhatsApp.

Nem todo site recebe esse tratamento.

“A Wikipédia é uma fonte de informação importante. Mas por que uma operadora vai fazer acordo com ela, se é um site sem fim lucrativo?”

Netflix e Twitter já se manifestaram contra a mudança.

Os críticos da votação na FCC lembram que Ajit Pai foi assessor jurídico da operadora de telefonia Verizon.

Mais de 20 nomes influentes no mundo da tecnologia, como Vint Cerf, “pai da internet”, e Steve Wozniak, cofundador da Apple, enviaram uma carta aberta à FCC solicitando o cancelamento da decisão.

Uma investigação do The Wall Street Journal mostrou que mais de 2 milhões de comentários favoráveis ao fim da neutralidade estão associados a contas falsas (algumas ligadas a pessoas mortas) ou a robôs.

Um dos maiores embates sobre o funcionamento da rede acaba de recomeçar – e não terminará tão cedo.


  

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