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Curto&Grosso O que ainda será manchete

ENTREVISTA

O papa devia se aposentar
29/03/2002 - Entrevista a Camilo Vanuchi -- Revista Isto É

O corpo magro e os óculos de lentes espessas escondem a personalidade combativa de dom Pedro Casaldáliga. Era assim em 1971, quando preferiu colocar na cabeça um chapéu de palha a usar a mitra e o anel que o episcopado pedia.

Hoje, após 30 anos como bispo na prelazia (diocese com poucos recursos) de São Félix do Araguaia (MT), dom Pedro começa a preparar o terreno para deixar o palácio episcopal onde mora – uma casa de taipa e tijolo sem reboque que está sempre com as portas abertas.

Em fevereiro do ano que vem, completa 75 anos e deverá renunciar ao episcopado, conforme manda a tradição.

“A aposentadoria deveria acontecer antes, para dar espaço a gente nova. Acharia bom que o papa renunciasse também. Cargos vitalícios não são muito oportunos”, alfineta.

Dom Pedro nasceu na Catalunha, Espanha, e chegou ao Brasil em 1968, em plena ditadura militar, para se tornar um dos principais porta-vozes dos excluídos do País.

Escolhido pela Congregação Claretiana (de Santo Antônio Maria Claret) para pregar o Evangelho no Mato Grosso, dom Pedro encontrou a chamada Amazônia Legal pilhada por latifundiários.

Naquela época, não havia médicos e quase nenhuma estrada na região. Dom Pedro pegou malária oito vezes, teve a cabeça posta a prêmio por fazendeiros e há três décadas luta em nome dos peões, posseiros e índios da margem esquerda do rio Araguaia: a prelazia compreende metade do Parque Nacional do Xingu, toda a nação tapirapé, muitos xavantes e quase todos os karajás do País.

Em 1975, ajudou a fundar a Comissão Pastoral da Terra e continua pregando a reforma agrária, nunca sem reforma agrícola.

“O lavrador deve ter a terra e também a infra-estrutura para trabalhar e viver com dignidade”, explica.

Há um ano, adotou aparelhos auditivos como fiéis companheiros: ele perdeu 50% da audição por causa dos medicamentos contra a malária. Tudo para continuar com pique para viajar pelo País e celebrar até cinco missas em um único dia, quando ocasiões especiais como a Páscoa o exigem.

Em plena atividade, há quem duvide que dom Pedro conseguirá se aposentar. Mesmo se o fizer, não deixará tão cedo de incomodar as autoridades com sua língua afiada.

ISTOÉ – A Campanha da Fraternidade deste ano teve como tema os povos indígenas. Por quê?

Pedro Casaldáliga – Há 500 anos os índios calam e apanham com a conivência da sociedade e muitas vezes com o silêncio da Igreja. Uma Campanha da Fraternidade é importante para incentivar o debate. Há muita desinformação sobre as comunidades indígenas, e os argumentos são os de sempre: para que tanta terra para tão pouco índio? Para que índio quer terra se índio não trabalha? Para que terra para índio se há tanto lavrador sem terra? Classificamos os povos indígenas com os nossos parâmetros e esquecemos que todas as terras do Brasil já foram deles. Poderíamos até afirmar que todo título não indígena é ilegítimo. No entanto, ainda não se conseguiu sequer aprovar o Estatuto dos Povos Indígenas, emperrado no Congresso desde 1991. A bancada ruralista, as grandes empresas madeireiras e mineradoras impedem. Há 500 anos atuam no Brasil as mesmas oligarquias. Os mesmos coronéis e políticos que brigam entre si antes das eleições, quando chega a hora, se unem para não perder o poder.


ISTOÉ – O lema da campanha faz referência ao mesmo mito indígena que inspirou o título da “Missa da terra sem males”, que o sr. escreveu em 1979. Como é este mito?

Casaldáliga – É um mito guarani. Numa época em que o povo guarani se sentia muito machucado, despertou-se para procurar uma terra sem males, como a terra prometida para os cristãos. Os mitos são a base da caminhada de um povo, mas são dinâmicos, também caminham com o povo. Segundo o jesuíta catalão Meliá, especialista em cultura guarani, a tradução deveria ser “Por uma economia sem males”, já que os índios não dissociam terra de sustento. O sonho dos guaranis seria uma economia solidária, visceralmente antineoliberal, sem os males da concentração de capital, do consumismo desenfreado e do desemprego.

ISTOÉ – A região do Araguaia também foi procurada como uma terra sem males.

Casaldáliga – Mas depois os retirantes perceberam que não era bem assim (risos). De fato, vieram muitas famílias do Nordeste, principalmente do Maranhão e do Piauí. Padre Cícero dizia que todos tinham de correr em busca da bandeira verde, da Floresta Amazônica, para escapar da seca. E cruzar o Araguaia como se fosse o mar Vermelho. O fundador da cidade de São Félix, um piauiense de nome Severiano Neves, quis homenagear a pequena São Félix do Piauí. E o motivo para a escolha do nome é chocante. Severiano argumentava que este era o padroeiro ideal por ser um santo contra os índios. Na verdade, São Félix de Valoi foi um missionário francês libertador de cativos na época em que os mouros prendiam cristãos na África. Nunca foi contra os índios. Mas atualizaram a história e transformaram os índios em novos mouros. Apesar de que foram os cristãos que sempre fizeram cativos nossos índios. Tínhamos seis milhões de índios no Brasil quando os portugueses chegaram. Hoje são 500 mil, contando os que moram em cidades.

ISTOÉ – A Igreja pede desculpas por ter calado diante da matança de índios na América Latina?

Casaldáliga – Estamos acostumados a homenagear os mártires que nos fizeram e esquecemos de prestar homenagem aos mártires que a Igreja fez. Isso é necessário e não basta uma Campanha da Fraternidade. Com as pastorais, enviamos às aldeias agentes de saúde, professores e auxiliamos nas questões jurídicas quando necessário. Há 50 anos, quando as Irmãzinhas de Jesus (ordem missionária de origem francesa) chegaram com uma missão ao Mato Grosso, encontraram 47 índios tapirapés, dispersos entre si. Quando cheguei ao Araguaia em 1968, havia uma centena. Hoje, são mais de 500, vivendo em aldeias. Muitos fazem faculdade, mas recuperaram a língua de seu povo, que estava praticamente extinta.

ISTOÉ – Como surgiu a Comissão Pastoral da Terra, da qual o sr. é um dos fundadores?

Casaldáliga – A CPT foi constituída em 1975, incentivada em parte pelos problemas da região da nossa prelazia, entre os rios Araguaia e Xingu. Sentíamos a agressiva implantação de latifúndios financiados pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Hoje, quando vejo na mídia os podres da Sudam, lembro que já os denunciávamos há 30 anos. Grandes proprietários do Sul recebiam incentivos fiscais e ocupavam áreas infinitas da Amazônia para desmatar muito e produzir muito pouco. Frequentemente com trabalho semi-escravo e choques violentos com posseiros e índios.

ISTOÉ – Hoje, o que a CPT denuncia?

Casaldáliga – Insistimos na urgência da reforma agrária, acima de tudo com reforma agrícola. O lavrador deve ter a terra e também a infra-estrutura para trabalhar e viver com dignidade. Discutimos também a Alca, a mais moderna e agressiva expressão do imperialismo americano. E agora estamos mobilizados para que seja aberta em 2004 uma campanha dedicada à água. De uns anos para cá, a CPT incluiu a água como tema central, a ponto de alguns membros proporem que a sigla seja ampliada para CPTA: Comissão Pastoral da Terra e da Água. No Brasil, o maior reservatório de água doce do mundo, grandes empresas já estão programando a privatização da água.

ISTOÉ – Mas a necessidade de racionar energia pode incentivar o governo a construir novas barragens e mais uma vez prejudicar as comunidades indígenas.

Casaldáliga – O governo sempre fez isso. Já foi demonstrado que a hidrelétrica de Itaipu poderia ter sido feita sem invadir as áreas e sem matar os operários, como fez. Agora, estão programadas diversas barragens no rio Tocantins e ainda existe o projeto de transformar o eixo Araguaia–Tocantins em uma hidrovia. São projetos megalomaníacos que normalmente se transformam em elefantes brancos, abandonados após gastos fabulosos, desmatamento e prejuízo da população ribeirinha.

ISTOÉ – A hidrovia traria que tipo de problemas?

Casaldáliga – Além de afetar áreas indígenas, prejudicaria a pesca e o turismo. Eu digo para as autoridades: ninguém visita um canal. Para comportar a hidrovia, as praias terão de sumir. O Araguaia é muito volúvel, anárquico, muda o traçado toda hora. Ele é muito raso e possui bancos de areia em toda a extensão, o que exigirá uma dragagem constante. Este ano, fui visitar Santa Teresinha (MT) e não consegui chegar de voadeira, barco que percorre qualquer riacho com um palmo de profundidade. Não sou contra o aproveitamento da navegação, mas é preciso respeitar os direitos humanos. Somos acusados de ser contra o progresso. Mas é preciso perguntar: progresso à custa de quem? Progresso para quem?

ISTOÉ – O que o sr. achou da ocupação feita no sábado 23 da Fazenda Córrego da Ponte, em Buritis (MG), propriedade da família de Fernando Henrique, e da prisão de 16 líderes do MST no local?

Casaldáliga – A ocupação não foi programada, como já declarou a própria diretoria do MST. Foi um gesto de desespero. Seria bom que se superassem os motivos pelos quais temos tantos sem-terra e pelos quais é necessário fazer esta reforma agrária forçada. Eu considero um cinismo das autoridades transformar a fazenda dos filhos do presidente em um símbolo nacional, como se ocupá-la, beber uma garrafa de vinho e usar um secador de cabelo fosse uma violação à pátria. Inclusive o ouvidor (Gercino José Alves, da Ouvidoria Agrária Nacional) pediu demissão por não ter se cumprido a promessa de se solucionar o caso com diálogo. A polícia se precipitou para a repressão, como sempre faz, para criminalizar o movimento.

ISTOÉ – Quem analisa a atividade das pastorais e os temas das Campanhas da Fraternidade tende a achar que a Igreja no Brasil é ótima. Como o sr. a avalia?

Casaldáliga – Nota seis (risos). Temos nossos pecados, nossa omissão. Somos corajosos, mas não respondemos aos anseios do povo.

ISTOÉ – O sr. considera o atentado ao World Trade Center o início de um mundo mais ecumênico e pluriétnico. Por quê?

Casaldáliga – Por pura necessidade de sobrevivência, o choque de civilizações terá de ser substituído por diálogo. Há no mundo um bilhão
de muçulmanos, de várias culturas e povos diferentes. Uma sexta parte da humanidade é muçulmana. E não adianta ser tolerante. Tolerância é o que havia na guerra fria, algo muito raquítico. José Saramago inventou a palavra igualância. Podemos aprender muito com os muçulmanos, um certo sentido de contemplação, de adoração a Deus. E acho sarcástico que se queira apresentar aquele como o maior terrorismo da história.
É uma blasfêmia. Esquecem-se o holocausto, Hiroshima, todas as guerras e invasões que tiveram o patrocínio dos Estados Unidos. E sobretudo a conquista da América e o que se fez com os índios, inclusive naquele país.

ISTOÉ – Como foi seu primeiro contato com um índio brasileiro?

Casaldáliga – Foi na minha mudança para São Félix. Saímos em um caminhão e passamos sete dias de Rio Claro (SP) até São Félix. Em parte do trajeto, demos carona para dois índios xavantes. Eles apontavam uma onça na beira da estrada como se estivessem mostrando uma ave. Em uma parada, ofereceram Coca-Cola e eles recusaram dizendo que tinha gosto de remédio. Na época, praticamente não havia estradas na região. Hoje temos muitas. Havia um único município e agora são 15. Com o progresso, entre aspas, espalharam-se muitas doenças entre os índios, como tuberculose, desnutrição e um ou outro caso de Aids. E também a doença do consumismo. Queríamos que houvesse um contato, não um choque. Um encontro, não um encontrão.

ISTOÉ – O que o trouxe ao Brasil e o que vai fazer a partir de 2003?

Casaldáliga – Pertenço a uma congregação missionária e sempre fui apaixonado pelas missões. Eu já tinha 40 anos e apareceu esta oportunidade. Pensei que pudesse não haver outra. Cheguei ao Araguaia em 1968 e fui sagrado bispo três anos depois, em 1971. No ano que vem, vou renunciar ao episcopado. A aposentadoria é compulsória quando o bispo completa 75 anos. E acho que deveria ser antes, para dar espaço a gente nova. Acharia bom se o papa renunciasse também. Cargos vitalícios não são muito oportunos. Nas empresas humanas, quando o dono atinge certa idade, é preferível parar. Vira conselheiro, mas passa a diretoria a outras mãos. O papa, os bispos e os padres também são humanos. Não queremos abusar do Espírito Santo.

ISTOÉ – Mas, depois de renunciar, o sr. se contentaria em ser um conselheiro?

Casaldáliga – Sonho terminar minha caminhada na África. A congregação claretiana à qual pertenço tem comunidades em Angola e Moçambique. Gostaria de dar um pequeno testemunho de amor àquele continente tão marginalizado. Mas, como a saúde não anda muito bem, fico na dúvida. Não quero dar trabalho.

  

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