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Críticas Construtivas Se todo governante quer, por quê não?!!!

ENTREVISTA

A vida é bela
12/10/2002 - Eliane Lobato*

Modesto, pintado de um controverso verde e com a fachada em forma de ondas, o edifício Ypiranga seria mais uma brava reminiscência da década de 50 em Copacabana, na zona sul carioca, caso não abrigasse o famoso escritório de Oscar Niemeyer.

Para se chegar à toca do Arquiteto do Século é preciso sair do elevador no nono andar e subir uma escadinha meio rocambole, improvável em projetos arquitetônicos de hoje.

Despojado de qualquer sofisticação ou modismo, o escritório é uma lufada de bom gosto, todo branco, com janelões de vidro que emolduram o mar azul. Nas paredes, a marca do dono: retas e curvas em total liberdade a formar desenhos e pilares filosóficos, como a frase:

"O mais importante não é a arquitetura, mas a vida, os amigos e este mundo injusto que devemos modificar."

De repente, tudo faz sentido: o predinho, a escada, o ambiente franciscano e idealista.

Se nada denota os arroubos criativos do criador de Brasília, do sambódromo carioca e de tantas obras espalhadas pela Europa, por outro lado revela o que verdadeiramente move Oscar Niemeyer: a simplicidade e a inabalável esperança de um mundo melhor.

Recém-lançado pela editora Revan, o livro "Conversa de amigos", com 56 cartas trocadas entre o arquiteto e seu engenheiro calculista preferido, José Carlos Sussekind, é uma boa oportunidade de se espiar o Niemeyer que a grandiosidade de seus projetos arquitetônicos esconde.

Nas 256 páginas, casos, "causos", política, família, filosofia, comunismo, arquitetura e o desgosto de um homem íntegro diante de uma sociedade egocêntrica.

Casado há sete décadas com Annita, 92 anos, Niemeyer, 95, mora em Ipanema e diz, nesta entrevista a ISTOÉ, adorar a "esculhambação" do Rio de Janeiro, sua cidade natal.

Conta ainda que "fugiu" de uma festa na casa de um amigo por não suportar tantas pessoas indiferentes à pobreza e que, se a escola de samba Vila Isabel realmente quiser homenageá-lo no próximo Carnaval, terá de encaixar em seu samba-enredo o Movimento dos Sem-Terra (MST) e a sua postura contra a Alca e o FMI.

...

ISTOÉ – O que é mais difícil: construir prédios ou
uma vida equilibrada?

Oscar Niemeyer – Arquitetura não é o mais importante. É o trabalho que eu faço, passei a vida debruçado na prancheta, mas o que me preocupa mais é o ser humano, que está abandonado. Fui criado pelo meu avô Ribeiro de Almeida, que foi ministro do Supremo Tribunal e morreu sem um tostão –- inclusive, a casa em que a gente morava estava hipotecada. Sempre tive essa idéia de que dinheiro não vale nada. Achei bonito ele morrer assim. Já disse que teria vergonha de ser um homem rico. Considero o dinheiro uma coisa sórdida.

ISTOÉ – O sr. é um homem rico?

Niemeyer – Não. Agora descobrimos, no escritório, que temos um débito com o Imposto de Renda de R$ 300 mil e conseguimos parcelar isso para pagar R$ 10 mil durante 30 meses. Se eu tivesse dinheiro, pagava, não é? Me agrada isso. Estou num bom caminho. Não quero ser rico. Podia ser, se quisesse. Tenho prazer e gosto de trabalhar e de ajudar as pessoas. Acho que o mundo vai poder mudar quando o ser for mais importante que o ter. Esse é o caminho: melhorar o ser humano.

ISTOÉ – O sr. acha que algum dos candidatos a presidente pode ajudar a construir um País melhor?

Niemeyer – Quando a eleição se aproximava, eu dizia que meu candidato seria o (Leonel) Brizola (PDT) ou o (João Pedro) Stédile (MST). O mundo escureceu e o vencedor precisa ser um homem de
luta. Ele não terá como problema apenas organizar as finanças do País, mas terá de enfrentar um mundo de guerras, massacres, violência. Eu achava que era necessário um presidente mais afeito a essas coisas, como o Brizola ou o Stédile. Por outro lado, não vejo as eleições com muito entusiasmo. O que queremos é mudar o regime. Dentro desse regime capitalista não se resolve nada, é tudo coisa de superfície. A miséria continua e tudo o que dela decorre também. A idéia é mudar o regime, queremos o socialismo. Regime de gente igual.

ISTOÉ – O sr. apoiou Ciro Gomes?

Niemeyer – Sim. Achei que o Ciro tem condições para mudar as coisas porque é mais altivo. Mas não sou contra os outros porque não sou contra ninguém. Penso que todo mundo tem seu lado bom. Uma vez meus amigos riram de eu dizer isso e
lhes mostrei que o Lenin pensava a mesma coisa. Que 10% de qualidade já bastava para um ser humano ser bom.

ISTOÉ – O que o sr. sente ao ver o patrimônio público ser destruído pela violência ou pela descaracterização?

Niemeyer – O patrimônio é importante, embora eu ache até que há um certo exagero de tombamento. Há muitos elementos da arquitetura e da história que devem ser guardados.

ISTOÉ – A depredação em Brasília provoca dor especial?

Niemeyer – A degradação das cidades começa sempre pelo aumento da densidade demográfica, que a incompreensão dos homens e o poder imobiliário provocam, lamentavelmente. Depois é a insensibilidade, a mediocridade ativa, que se incumbe de desmerecê-las. Brasília foi uma aventura bonita de JK. A primeira vez que fui lá era uma terra hostil e abandonada, que Juscelino, com sua determinação, transformou na nova capital.

ISTOÉ – "Mas Brasília não tem esquina..." é uma queixa reiterada.

Niemeyer – Quando se pergunta a alguém de Brasília se quer sair de lá, responde não. Fico até espantado. O Plano Piloto de Lúcio Costa apresenta aspectos importantes que justificam essa preferência pela cidade. O comércio local e as escolas junto da habitação, isso sem falar do Eixo Monumental, que uma capital como Brasília exigia. Mas, pessoalmente, gosto mesmo é do Rio, da praia, dessa esculhambação geral a que nos habituamos.

ISTOÉ – O sr. é um carioca que usufrui do Rio?

Niemeyer – A vida é rir e chorar. A gente não quer o niilismo. A gente quer estar dentro da realidade para saber se conduzir. Tem de aproveitar os momentos de paz que podem ser vividos nesta cidade... Aproveitar a praia, o futebol, como toda pessoa sadia. Ao mesmo tempo, eu gosto da solidão. Gosto de fechar a porta e ficar aqui pensando na vida, nas posições em que devo me manter radical. Penso no passado, na família, nos amigos que se foram. E uma tristeza mansa me envolve e me faz até bem.

ISTOÉ – Conversa de amigos nasceu com que intenção?

Niemeyer – A idéia inicial era falar sobre a profissão, mas foi superada. O que interessa mesmo, eu sempre digo, é a vida. Para mim a arquitetura não é o principal. É o contato humano, é a gente sentir que a vida é um minuto.

ISTOÉ – Está satisfeito com o resultado?

Niemeyer – Estou. É um livro sem grandes pretensões, uma boa conversa de amigos. Não trabalho com computador. Nem sei mexer. Agora estou numa luta porque vou escrevendo e a
letra vai ficando pequenininha e depois eu não entendo.

ISTOÉ – Em que sentido a vida é um minuto?

Niemeyer – Sou pessimista. Não como Schopenhauer. Eu me identifico com a linha do Nietzsche, do Sartre. A vida não tem perspectiva. O importante é a gente estar dentro da realidade, saber que tudo é um minuto e não vale a pena estar brigando. Sempre digo que todos têm um lado bom. Isso ajuda a viver. A minha preocupação é ajudar as pessoas, ser útil, reconhecer que a vida é um espaço curto e estamos no mesmo barco.

ISTOÉ – O sr. acha mesmo que seria possível uma
sociedade de iguais?

Niemeyer – Acho, é claro, mas é difícil de realizar. Às vezes, é preciso a noite para surgir o dia. O inesperado comanda a história, o mundo.
Para pior ou para melhor. Lembro que estava num restaurante conversando com amigos na véspera de as torres de Nova York (WTC) serem derrubadas. Eu falava sobre o inesperado, e no dia seguinte ele aconteceu, mudando tudo. Não houve o Hitler? Agora não há o Bush? Um abutre. É péssimo. Tenho a impressão de que a guerra é inevitável.

ISTOÉ – A falta de ideologia dos jovens de hoje tem fundamento?

Niemeyer – Fiz uma palestra em São Paulo, recentemente, e terminei dizendo: "Quando a vida se degrada e a esperança foge do coração
dos homens, só a revolução." E eles se levantaram e bateram palmas durante muito tempo. Mas, no dia seguinte, por falta de organização, esqueceram tudo com certeza. Lembro o (Carlos) Drummond a falar dos "inocentes do Leblon". A natureza a chamar a juventude para a praia, não deixando tempo para nada. Por isso, digo sempre aos
jovens arquitetos que o importante não é sair da escola como profissional competente, mas estar consciente dos problemas da vida, desta miséria imensa que precisa ser eliminada.

ISTOÉ – O sr. já fez análise?

Niemeyer – Não. Acho muito bom a pessoa se recolher e ficar pensando em si mesma, conversando com esse ser que tem dentro
dela, que é nosso sósia, né? Eu converso com ele a vida inteira.

ISTOÉ – Como é sua rotina de trabalho?

Niemeyer – Estou nesse escritório há 30 anos e tenho a minha maneira de trabalhar, que é sozinho. Arquitetura é coisa muito pessoal, sozinho num canto, mas o desenvolvimento de um projeto pode ser feito em equipe. Chego ao escritório às 9h30 mais ou menos. Almoço e fico até umas 20h. Como não enxergo bem no escuro,
evito sair à noite, a não ser com amigos.

ISTOÉ – O sr. ainda fuma?

Niemeyer – Boa lembrança, vou fumar. Quer também?

ISTOÉ – É cansativo ser tão homenageado como o sr. é? O que é um momento de glória a essa altura?

Niemeyer – Esse negócio de entrevistas, televisão, precisa parar um pouco porque cai na rotina, a gente fica se repetindo. Quando falo a estudantes ou escrevo, a luta política está sempre presente. Chamo a atenção deles para a necessidade de mudar. Se não fosse Fidel (Castro), Cuba continuaria ocupada pelos americanos. Não acredito em momento de glória: somos insignificantes demais para pensar nessas coisas.

ISTOÉ – Algumas pessoas trazem de Cuba uma
impressão de infelicidade.

Niemeyer – Engraçado... Sempre ouvi o contrário. O povo feliz, orgulhoso da revolução, hoje um exemplo para a América Latina. Lembro-me da noite em que Fidel esteve em meu escritório. Convidei amigos e, à meia-noite, quando ele ia embora, o elevador enguiçou. Para pegar o outro, ele teve de passar pelo apartamento de um vizinho que até hoje conta essa ocorrência com certo orgulho. Dá para imaginar o susto do casal ao abrir a porta e dar de cara com o Fidel? O único comunista que mora nesse prédio sou eu. Mas, quando Fidel saiu, o edifício todo estava iluminado e o pessoal batendo palmas. Dizem que é preciso a noite para surgir o dia, e foi isso que aconteceu com Cuba.

ISTOÉ – O que não deixa de ser triste porque pressupõe que a escuridão é necessária, não é?

Niemeyer – É, na Rússsia está acontecendo o mesmo e nós, comunistas, tranqüilos, certos de que lá o dia vai voltar de novo.

ISTOÉ – Como viver muito e bem?

Niemeyer – Simplificar a vida, ter amizades, ajudar um ao outro. O (Jean-Paul) Sartre dizia que gostava de ter dinheiro no bolso para dar esmola. Mas isso para ele não era apenas um hábito louvável, mas um momento de prazer que a todos deveria se estender. No dia em que as pessoas pensarem assim e houver mais solidariedade humana, será muito melhor. Outra noite fui à casa de um amigo, havia uma recepção, eu não sabia. E a sala começou a se encher de gente esfuziante, as mulheres chiques, os homens elegantes, todos dizendo frases inteligentes, sem a menor idéia do que à volta deles está ocorrendo de miséria e desespero. Achei aquilo tudo tão falso que fui embora e deixei um bilhete para o meu amigo.

ISTOÉ – O que o sr. acha de ser homenageado pela
Vila Isabel no Carnaval?

Niemeyer – Não sei se eles farão isso porque, para me homenagear nesse desfile, terão de pôr em destaque o MST, a luta pela reforma agrária, a luta política contra a Alca, o FMI, contra todos os interesses americanos que ameaçam a América Latina. Acho que escola de samba deveria servir, às vezes, como veículo de protesto, para cantar os anseios da gente pobre. Afinal, os sambistas que descem do morro divertem a burguesia -– que bate palmas, acha fantástico, mas no dia seguinte tudo esquece.

ISTOÉ – É interessante o sr. ser homenageado no
sambódromo que idealizou?

Niemeyer – É claro, é gente boa e junto deles me sinto muito bem. Mas não acredito nesse negócio de memórias. Tudo passa. A natureza é assim.

ISTOÉ – O sr. tem muitos netos, bisnetos. Crianças inspiram novos projetos de vida?

Niemeyer – Tenho apenas uma filha, mas o pessoal saiu num entusiasmo tal que hoje tenho mais de 20 descendentes. São jovens, e o que eu gostaria mesmo era de poder ajudá-los, vê-los crescer, e isso a idade não vai permitir.

ISTOÉ – Como se faz para manter um casamento mais de 70 anos?

Niemeyer – Manter o clima de amizade e respeito mútuo. Tantos anos passados e minha mulher, que levanta sempre muito cedo, volta para a cama do lado esperando dar 8:30 para me acordar. Muitas vezes finjo que estou dormindo só para ela ter o prazer de me acordar dizendo: "Oscarzinho, são oito e meia!"

...

*Revista ISTOÉ nº 1724

  

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