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RELEITURA
O velhinho comunista
04/07/2008
- Olavo de Carvalho*
Nos tempos antigos, em cada cidade do interior existia um velhinho erudito que vivia entre livros e não conversava com ninguém. Como compensação talvez de seu isolamento, era em geral comunista – e se não era, ao menos tinha fama de ser, já que nesses meios ninguém sabia em que podia consistir o tal comunismo, razão pela qual a palavra que o nomeava era usada para designar qualquer conduta suspeita que não fosse adultério ou pederastia. E nada mais suspeito, é claro, do que ler livros.
Foi assim que ser comunista – ou, melhor ainda, parecer comunista – se tornou um emblema convencional de cultura. E quando a expansão do ensino público, obra dos governos militares açambarcada pela militância esquerdista, deu a imensas populações o acesso ao vocabulário do Partidão e da AP, aí foi uma festa: todo menino que adquirisse os cacoetes verbais do esquerdismo sentia-se um sujeito cultíssimo, habilitado a opinar sobre política, religião, moral, metafísica e viagens espaciais.
As eleições trouxeram quantidades maciças dessas criaturas para o Parlamento, a seleção dos jornalistas por diploma colocou-as nas redações, o crescimento do ensino universitário elevou-as a professores e reitores.
Foi inevitável que essa gente logo tratasse de nivelar todos os valores culturais pela sua própria estatura, sendo nisto reforçada pela providencial ascensão do ¨politicamente correto¨ na Grande República do Norte, a qual, justamente por ser a terra do abominável capitalismo, foi declarada testemunha insuspeita para opinar no caso.
E tão universal aceitação alcançou o novo sentido da palavra ¨cultura¨, que até as classes ricas, que tinham acesso a um ensino melhorzinho, abdicaram dele para não perder o trem da História, e hoje acham inteiramente natural pagar mensalidades pesadíssimas em colégios de luxo para que aí seus filhos aprendam, democraticamente, a não saber mais do que os outros.
Na década de 70, o romancista Osman Lins fez um exame da nossa literatura didática e encontrou um panorama de desoladora estupidez.
Na época, foi fácil atribuir ao governo militar a culpa das enormidades que esse material escrito impingia às nossas crianças.
Mas as hordas esquerdistas que, com a redemocratização, tomaram de assalto todos os órgãos educacionais, estão lá há 20 anos e conseguiram tornar ainda mais patético, pelas altas presunções modernosas que o legitimam, o conteúdo dos livros didáticos.
Em resultado, a burrice das elites falantes brasileiras raia hoje o calamitoso e é, no fim das contas, o único problema nacional – o único problema substantivo, do qual todos os demais derivam como seqüelas e corolários que a eliminação dele suprimiria automaticamente, sem esforço.
No entanto, basta abrir os jornais, ligar a televisão ou – com um pouco mais de caridade – assistir a congressos acadêmicos para notar que todos os problemas são discutidos, menos esse.
É lógico: quem discute é a própria elite falante, e ela necessita chamar a atenção para mil e um problemas para que ninguém perceba que ela mesma é o problema.
Discute-se principalmente a educação popular, nunca a educação da elite incumbida de educar o povo – o que leva o ingênuo ouvinte a pressupor que, essa elite já existindo e estando preparadíssima, só falta educar os outros...
A incapacidade de pensar, a rombuda incompreensão de palavras e argumentos, a tendência incoercível a raciocinar por slogans e termos da moda, o empirismo tolo que se perde em detalhes e casuísmos por incapacidade de abstração, a compulsão senil de rebaixar o nível de exigência intelectual para agradar a uma platéia ¨popular¨ que no fundo está pouco se lixando para isso, a redução de todos os debates ao confronto mais imediatista de governo e oposição – tudo isto mostra que o Brasil entregou o seu destino mental ao guiamento de um bando de macacos que só sabem pular, se exibir e pedir pipocas.
Visto de longe, esse espetáculo se torna ainda mais grotesco.
Gilberto Amado dizia que tinha um orgasmo cada vez que via um brasileiro capaz de juntar premissa e conclusão. Hoje ele viveria numa privação ascética de fazer inveja a Santo Antão.
E dizer que tudo isso começou porque o pessoal decidiu tornar-se culto e, vendo o exemplo do velhinho comunista, achou que para ser culto bastava ser comunista...
...
*Artigo originalmente publicado no ¨Jornal da Tarde¨, 30 de setembro de 1999
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