|
RELEITURA
O ¨parteiro¨ de Cuiabá*
18/10/2008
- Marcos Antonio Moreira - fazperereca@yahoo.com.br
O médico obstetra Gabriel Novis Neves, 64 anos, já ¨pariu¨ a Universidade Federal de Mato Grosso da qual foi o primeiro reitor e, agora, está cuidando do parto da Faculdade de Medicina da UNIC, a maior universidade privada de Cuiabá.
Ao longo dos últimos 40 anos, desde que se formou na antiga Universidade Nacional da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, Novis Neves trabalha em média 15 horas por dia, em vários empregos, como quase todo médico.
Nesse período, realizou algo em torno de 12 mil partos — o dobro da população urbana e rural do município de Porto dos Gaúchos, na floresta Amazônica, ou Acorizal, na Baixada Cuiabana ou, ainda, um contingente maior que o número de habitantes do município de Juscimeira, no Vale do São Lourenço, ou de São Félix, no Baixo Araguaia.
— ¨Estou na terceira rodada¨, brinca Novis Neves, parteiro de três gerações e um dos profissionais mais competentes e respeitados em sua área, no Estado e no pais.
Competente, respeitado e corajoso, como se poderá notar nesta entrevista exclusiva que ele concedeu à RDM, na qual Novis Neves traça uma radiografia da medicina e da saúde, em Cuiabá, em Mato Grosso e no Brasil.
Qual o diagnóstico que o sr. faz da saúde e da assistência médica em Mato Grosso?
— Há um claro divisor de águas, antes e depois da implantação da primeira Faculdade de Medicina pela UFMT. Antes, o conceito era o de que médico bom era aquele que tinha várias fazendas. Hoje é a sua qualificação acadêmica, o mestrado, o doutorado e, principalmente, os livros científicos que o médico tem em sua biblioteca. Cuiabá já não precisa mais recorrer a grandes centros. Aqui já éum grande centro médico. Nas áreas da cirurgia cardíaca, toráxica, oftalmológica, da reprodução humana, da neurocirurgia, da cirurgia vascular, da enfermagem, da fisioterapia, da imagem e da nutrição o avanço foi muito grande. Temos profisisonais da mais alta competência científica, inclusive internacional, atuando aqui em Cuiabá. Número de hospitais, porém, não significa saúde. Só vamos ver que a saúde melhorou quando a população for convidada para o fechamento de um hospital e não para a inauguração. Hospital significa doença. Hospital é a derrota da saúde.
Na área hospitalar, foram notáveis os avanços tecnológicos em termos de instrumentais, de equipamentos e de estrutura física, nos últimos anos. E a relação médico-paciente também melhorou?
— Piorou sensivelmente. Posso até afirmar que, no momento, está interrompida. Há 40 anos, quando o médico atendia pela primeira vez um paciente sabia que estava conquistando um amigo. Hoje, o médico vê potencialmente um inimigo. Uma pessoa que, em algum momento da vida, pode lhe extorquir através de ações na Justiça, exigindo indenizações milionárias por causa do efeito colateral de Melhoral Infantil. O médico, hoje, é um oprimido. Ao preencher uma ficha médica deve ter mais cuidados jurídicos do que clínicos. Acabou a envolvência médico-paciente. Agora prevalece a desconfiança, o medo. As pessoas estão em pé de guerra. Este clima de terrorismo deixou a medicina brutalizada, desumanizada. Medicina é doação. Não é biologia, tecnologia, é humanismo. E este gesto, hoje, é temerário. Que tipo de paciente procura o médico, hoje? Um, o paciente do SUS, que ficou seis meses ou um ano na fila para conseguir uma consulta e que chega diante do médico com o nível de paciência zero. E joga toda aquela espera sofrida em cima do médico. Outro, é o paciente de convênio. Este chega com a sensação de que foi roubado, pois descontou o tempo todo para a Previdência e, na hora em que precisa, tem que pagar por um plano de saúde. Acha que tem direito a tudo, quando não tem, porque os planos de saúde impõem muitas restrições. Quanto ao cliente particular, este já não existe mais.
Muitas pessoas, geralmente as mais idosas, justamente reclamam que a formação dos médicos, hoje, é mais mercantilista que humanística. Há alguma dose de razão nisto?
— Não. Não há. Inclusive, as faculdades de medicina, hoje, investem muito na formação humanística. Os alunos de Medicina da UNIC, por exemplo, estudam Sociologia Médica, Antropologia Cultural, História da Medicina e Psicologia, disciplinas que não existiam quando estudei. Todos vão sair daqui com a exata consciência de que quando alguém entra num consultório médico, não pode sair com um estado de ânimo pior do que quando entrou.
Que avaliação o sr. faz dos planos de saúde, da chamada medicina de grupo? O sistema é bom para a empresa, para o médico, para o paciente, para todas ou para nenhuma das partes?
— Os planos de saúde existem porque o governo é um ausente. E uma irresponsabilidade do governo não assumir a obrigação de garantir a saúde do cidadão. Só no papel. A Constituição diz que a saúde é um direito do cidadão e uma obrigação do Estado. Você pode até comprar um serviço médico, mas não compra saúde.
O governo federal está investindo agora num programa denominado ¨médico de família¨ e em agentes comunitários que fazem um trabalho de prevenção nas áreas urbana e rural. O caminho é este?
— Não se pode falar em saúde pública, em prevenção, sem resolver primeiro o problema da educação. O médico sempre foi de família. Quem tirou o médica da família foram os programas governamentais absurdos. Vou dar um exemplo: o médico não pode fazer uma consulta domiciliar. Tem que encaminhar para um hospital. Ao afastar o médico da casa do paciente, isto, evidentemente, vai encarecer o plano de saúde, encarecer o procedimento e inviabilizar o atendimento. Como o médico de família se propõe a fazer educação no ambiente em que vive a doença, acredito que seja uma alternativa boa para um país em que a taxa de analfabetismo éde 16%. Ao ver a realidade em que vive o paciente, o médico de família vai fazer, na verdade, educação. Na UNIC, estamos desenvolvendo o Programa Médico da Família, com excelente aceitação da comunidade e dos alunos.
A saúde pública, durante muitos anos, esteve a cargo das Santas Casas de Misericórdia e hospitais beneficentes. Hoje, a grande maioria destas instituições está tecnicamente falida ou em vias de fechar as portas. Isto se deve à má gestão ou à insensibilidade do poder público?
— Os primeiros hospitais fechados no Brasil pertenciam ao governo. O governo abandonou a área social fechando os hospitais do Iapetec, do Iapc e do Iapi, verdadeiros centros de referência e de formação de médicos do mais alto nível científico. Ficaram os filantrópicos, mas recebem uma taxa tão ridícula, que a manutenção se tornou inviável. Para se ter uma idéia, o governo brasileiro investe na área de saúde 100 dólares/ano por habitante, enquanto no Canadá são investidos 1 .200 dólares/ano. Será que é só lá que existem bons administradores? Além do que, no Brasil, existe um problema cultural, que é a figura do acompanhante. Um hospital de 60 leitos, na verdade, tem que ter 120. A presença do acompanhante, além de cara e desnecessária, muitas vezes é também inconveniente, porque dificulta e até tumultua o tratamento. O dinheiro gasto com acompanhantes poderia ser melhor aproveitado pagando melhor os profissionais e equipando melhor os hospitais. Esta questão já foi enfrentada e equacionada há um século, nos Estados Unidos. Há alguns anos, estive no Utiariti. Encontrei o hospital da Missão lotado de índios. Fiquei espantado com tantos doentes. A irmãzinha responsável pelo atendimento me explicou, então, que apenas uma criança estava com pneumonia. O resto da tribo estava lá acompanhando o doente. Diante da doença, o brasileiro age assim. É cultural, é atávico.
Vimos surgir, nos últimos anos, principalmente em Cuiabá e algumas cidades-pólo, inúmeros hospitais especializados nas mais diferentes áreas da medicina. Afinal, medicina é um bom negócio?
— Todos os hospitais privados estão quebrados. Bom negócio é diagnóstico e venda de medicamentos. Os hospitais privados existem porque o médico quer ter um lugar para trabalhar. Eu pergunto: os grandes empresários brasileiros investiram ou têm hospitais? Roberto Marinho, que tem investimentos nas mais diversas áreas, tem algum hospital? Os investimentos privados externos que estão chegando ao país vão ou foram empregados na construção de algum hospital? Algum empresário manifestou interesse em comprar o Hospital Geral ou a Santa Casa? Não, porque, definitivamente, não é um bom negócio.
Muitos médicos, para chegarem ao final do mês com um ganho mais ou menos razoável, são obrigados a ter três empregos públicos e, ainda, atender em seu consultório. O governo paga tão mal assim?
— O governo faz de conta que paga, o médico faz de conta que trabalha e o público fica com a impressão de que recebe assistência. No Hospital Júlio Müller, que é federal, o professor de medicina, em início de carreira, ganha 700 reais. Para sobreviver, o médico, hoje, tem que ser um grande administrador de tempo.
A UNIC acaba de assumir a administração do Hospital Geral para transformá-lo em hospital-escola. Objetivamente, dentro de quanto tempo e em que medida a população será beneficiada com a mudança de direção?
— A população já está sendo beneficiada porque o Hospital Geral não fechou. Tinha até data marcada para o enterro, 31 de janeiro, e para a missa de sétimo dia, 7 de fevereiro. Graças à UNIC, o Hospital Geral permanece aberto. São poucos leitos disponíveis, ainda, mas está atendendo a população. Estamos realizando um planejamento estratégico para transformar o Hospital Geral em um Hospital-Escola modelo de excelência e de referência onde, no mínimo, 70% dos leitos serão destinados a pacientes do SUS.
Entre optar pela moeda ou pela medalha, qual o conselho que o sr. daria a seus alunos?
— Cada um deve fazer o que lhe dá sensação de utilidade. Optei pelo sonho. Pela ilusão de transformar para melhor a realidade. Aos 64 anos, trabalho 15 horas por dia. Medicina é doação. Isto consome uma energia brutal. Ao fim do dia, depois de atender 15 ou 20 pacientes, perco completamente as forças e tenho que me deitar. O médico é o medicamento mais consumido por quem necessita de terapêutica. Se eu me doar, a pessoa, certamente, vai se sentir melhor. Em muitos casos, o simples fato de a pessoa ser atendida com atenção já é o suficiente para reanimá-la. Algumas vezes, porém, sou obrigado a receitar um placebo só para justificar o procedimento. Se não, a pessoa sai reclamando que paga não sei quanto por um plano de saúde e, quando me procura, acabo não receitando nada. E ainda corro o risco de ser processado por isto. É o resultado da ideologia da eficiência tecnológica.
...
*Entrevista originalmente publicada na revista RDM no ano 2000
Compartilhe:
|
|