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comTEXTO : 31 de Março, 1964

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21/10/2005- Talvani Guedes da Fonseca



CAPITULO XXXII

Levara mais de duas horas para atravessar a Zona Sul e chegar a Norte. Notara algo estranho naquele lado da cidade, que desconhecia, e estava ficando com fome. Só nas proximidades do Centro via construções do início do século, em estilo europeu, presas no tempo, porém ali, no pé de uma ladeira na Gamboa, na parte mais escondida do bairro, tudo era esquisito, diferente, havia sujeira por todo lado.

Provavelmente, quem o deu à Desdê, pregou uma peça e ele disse:

¨Esse endereço deve estar errado. Que lugar mais estranho!¨

Desconfiado, cansado da longa e extenuante tirada desde a Zona Sul, teve que estacionar num beco e após averiguar se não havia perigo, de olhar para todos os lados àquela visão fora do real, só então deixou-a descer do carro.

¨Estou preocupada¨.

¨Com quê?¨

¨Que você não fugirá, quando eu preciso tanto de você...¨

Para não piorar as coisas, respondeu:

¨Não tenho a tarde toda, economize meu tempo, não desperdice¨.

Já desistira de decifrá-la desde quando ela não quis explicar como conseguira o endereço.

Impacientava-se, mas decidira aguardá-la e pacientemente, por uma questão de honra, insistiu:

¨Eu prometi que ajudaria e falei sério. Faça o que tem que fazer, mas, faça logo¨, disse-o e calou, deixando-a ir, só, tentar achar um lugar que evidentemente, se fosse uma clínica, jamais poderia ser ali. Conferindo-o, dirigiu-se a um lugar de difícil acesso, recuado, sombrio, asqueroso e mais repulsivo, realmente assustador e observando-a de longe, viu-a entrar por uma calçada empoeirada numa viela, em seguida num beco, percorrer e subir uma escada e por fim, minutos depois, por volta das quatro horas, voltar sem ter encontrado o local.

Sem que Desdêmona notasse ele a seguia, a via caminhar pela sombra do terreno, parar diante de uma casa de primeiro andar, apertada entre um muro de pedras e um terreno coberto por um tapete ocre de folhas secas, muito lixo, o entulho cheirava a restos assim como a imundice dos escombros de metralha fedendo a esterco, urina e fezes humanas, um lugar fétido e cheio de ratos.

À sombra de uma jaqueira espalhava-se no ar, ainda fumarava a cinza quente de uma fogueira. Um vira lata feio, de uns dois palmos de altura, que apareceu com os pelos eriçados, rosnando, dentes à mostra, Desdê não agüentou e ligeirinho voltou ao carro.

Com os olhos parados no cão, como se de repente percebesse o perigo, ficara pensativa, dava para ouvir pulsar seu coração, sem ter qualquer noção de onde estava. Surpreendera-o a estranheza de um lugar em perfeito silêncio onde nem vento havia, provavelmente nem moradores havia naquele cortiço sujo, povoado de sombras, abandonado ao longo de um estreito terreno baldio que acabava num muro escuro de pedra, cheio de destroços de velhas casas, surradas e sinistras, cujos alicerces apareciam. Um mundo recluso, escondido no sopé de uma escadaria de suave declive que levava a outros cortiços em cima do morro.

Estranho e secreto silêncio tinha o mais degradante lugar que já vira na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Sentia-se como se estivesse dentro de um depósito de lixo, repulsivo, nojento, deprimente demais, insuportável!

Viveria alguém naquelas condições? Nunca iria imaginar que naquela parte velha da cidade, quase em pleno centro do Rio de Janeiro, haveria miséria pior do que a testemunhada em Brasília Teimosa, uma das mais novas invasões urbanas de Natal.

A segurança era mais um motivo para se preocupar.

Queria sair dali, daquele ambiente inseguro, o mais rápido que pudesse, a sensação que tinha era de estar numa cidade em ruínas, só esperava que tudo acabasse logo.

Não obstante a arquitetura presa no tempo, do começo do século, que ele tanto admirava, não se identificava de jeito nenhum com aquele lugar obscuro, uma mistura de pátio e jardim.

Qualquer ar era insuficiente para dispersar o odor insuportável naquele lugar promíscuo onde não dava, não havia como respirar naquele ambiente abafado e sufocante; nem mesmo dava para sentir o agradável aroma das goiabeiras, dos pés de pitanga, carambola, de um frondoso sapotizeiro carregado de frutos.

A despeito do ambiente sujo, sinistro, sempre reclamando que o lugar era horrível, batendo de porta e porta, depois de olhar mais uma vez ao redor Desdê pegou o papel onde anotara o endereço e foi em frente.

A paciência se esgotava rapidamente. Recusando-se a acompanhá-la, com nojo, alertou-a:

¨Veja se não vai demorar. Estou com pressa! Cuidado onde pisa!”

Enquanto esperava, vendo Desdêmona desorientada, indo de um lado para outro, percebeu o absurdo da situação em que se metera, mas não seria correto largá-la, sozinha. Percebera que ali ela nada conseguiria:

¨Cuidado para não cair¨, aconselhou-a.

Meio contrariado, inquieto, ele esperava, sabendo que seria mais seguro não confiar e cair fora. Ficou um bom tempo olhando em volta, sem perdê-la de vista.

No fundo de um terreno, sob uma varanda de ferro, enferrujada que se projetava sobre a calçada e parecia cair, desafiando a gravidade, ela parou, bateu palmas e de longe ele percebeu que ela tinha descoberto alguma coisa, deduziu até que lá talvez fosse o endereço.

Na pequena sacada de uma casa de primeiro andar, contrastando com uma bela fachada decorada com azulejos coloridos, bem preservados, que cobriam partes, pedaços da parede, descabelada, uma verdadeira figura de bruxa, ao vê-la uma velha que estava sentada numa cadeira de balanço na sacada, atrás de uma grade envidraçada, levantando-se, entrou e fechou a porta.

Apesar da profunda irritação, à espera da chegada de Desdê, uma espera que parecia levar uma eternidade, acompanhara do carro a cena surrealista, inimaginável, de Desdê procurando, procurando e nada encontrando.

Para a sua surpresa, após a inútil busca, minutos depois ela voltou.
Nervosa, esbaforida, saltitante, toda serelepe, seus passos martelavam no cérebro ao ecoar no silêncio da tarde. Um som estridente, saltos altos e finos batendo na calçada.

Lívida, atônita, Desdê contou que a mulher que fora procurar sumira e com alguma satisfação, ele só respondeu:

¨Pode ser um equívoco, confira o endereço¨.

¨Já conferi, mais de uma vez!¨

E ele, que já tinha feito mais do que fora pedido observou:

¨Eu não posso mais levar essa história adiante, Desdêmona, e quem lhe deu essa indicação não quer que você aborte. Está claro que aqui não é lugar de clínica, nem as piores de Natal, das aborteiras clandestinas que atendem as prostitutas de Maria Boa e Rita Loura ficam em lugares como este, assim, tão sujo!”

¨Vá à merda¨, disse ela, olhando para trás, como à procura do homem da motocicleta.

...

Leia amanhã o Capítulo XXXIII

Jornalista, escritor e poeta norte-rio-grandense

  

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