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comTEXTO : 31 de Março, 1964
O dia do golpe
03/11/2005- Talvani Guedes da Fonseca
CAPÍTULO XLV
¨Lenine é a prática, diz que sem derrotar o capital é impossível uma paz verdadeiramente democrática, que não seja imposta pela violência. Na Rússia, em 1917, pelo fato do proletariado não ter o suficiente nível de consciência e de organização, o poder ficou com a burguesia, e agora, aqui, finalmente, o poder vai ficar nas mãos da classe média, porque os tenentes são classe média e capitalistas, e os capitalistas são os piores inimigos da paz e do socialismo¨.
“Esse termo, proletário, nunca entendi bem”.
“É que desde o início do capitalismo a função do pobre é produzir e fornecer sua prole ao estado”, resumiu Sarita.
Vendo a dificuldade do nordestino para acompanhar a discussão, Sarita perguntou:
¨Quanto a esse golpe, companheirinho, o que você está entendendo?¨
¨Olha, para ser franco, ainda não compreendi nada¨.
¨Até a 1ª Guerra Mundial´, começou Sarita”, quem mandava no Brasil eram os fazendeiros, éramos um país agrícola que importava tudo, um país com noventa por cento da população vivendo na costa.
¨Os fazendeiros ainda mandam, companheira¨, observou Humberto.
¨Sim, mandam muito¨, disse o dirigente, ¨mas o que Sarita quer dizer é que, devido à guerra, ficou difícil importar, foi graças a ela que tivemos a primeira alteração na vida econômica do país, começamos a sair do campo. Olha, até 1920 ex0portávamos apenas gêneros agrícolas, café, açúcar, algodão, borracha, cacau; em compensação, importávamos o que era manufaturado, industrializado, vinha de fora, porque não interessava à classe dominante, eminentemente rural, conservadora, a industrialização. Os fazendeiros não queriam perder o controle nem da economia nem do estado, não queriam saber da indústria, bom para eles seria continuarmos um país exportador de matéria prima, quanto às importações, tudo bem, também, porque, como eles eram o poder, para manter o preço dos importados o mais baixo possível, forçavam o governo, que era repartido entre as oligarquias de São Paulo e Minas Gerais, num sistema de revezamento, a manter nos níveis mais baixos os impostos de importação, ao mesmo tempo em que o povo pagava os prejuízos, porque usava-se o dinheiro público, os impostos, para comprar todo o café que não fosse exportado”.
“Na guerra demos o primeiro passo em direção ao processo de industrialização, e isso já bem tarde, muito depois da Europa e Estados, onde o capitalismo industrial já estava bastante avançado¨.
Pela primeira vez ele via alguém expondo ou querendo expor todas as peças, para fazê-lo entender o que se passava.
¨Tudo se relaciona, companheiro¨, falou com muito magnetismo e fino senso de humor, a doce Sarita.
¨Quer ver como é? Em 1889 tivemos a abolição, coincidentemente na época em que os fazendeiros mais ganhavam dinheiro, quando a economia do café, em conseqüência do aumento das exportações e das elevações do preço no mercado internacional, cada vez mais crescentes, mais necessitava de mão-de-obra, o que obrigou o governo a apelar ao imigrante assalariado, muito mais preparado que o escravo liberto, além do que, companheiro, traziam a idéia da greve, o sonho anarquista de uma humanidade nova, melhor, uma civilização humana que seja digna da nossa capacidade e dignidade de seres humanos, uma sociedade igualitária, socialista, voltada para todos, para o interesse de todos, sem luta de classes, e foi a partir deles que surgiu uma classe média, urbana. Quantas vezes os militares interferiram na vida política do país? A profissão obriga os oficiais a estar em constantes deslocamentos pelo país e foram eles os primeiros a constatar o atraso da população, isso é que explica a participação ativa do Exército nos mais importantes acontecimentos da nossa história, desde a proclamação da república. Os militares atribuíam o atraso do Brasil ao domínio político exercido pelas oligarquias agrárias, daí a explicação para o tenentismo em 1922, 1924 e ao longo de toda a década de 1930. A ação dos tenentes determinou o fim da Primeira República, foi a união com políticos derrotados nas eleições de 1930 que os levou a decidir pelas armas, a dar um fim ao sistema oligárquico, com reformas sociais, centralização do poder e reformulação do sistema político vigente. Muitos tenentes haviam participado do movimento tenentista. O Brasil de antes, o Brasil pré-Revolução de 30 era um país agrícola, com um governo fraco, um Estado arcaico e um povo sem direitos individuais e sociais. A revolução de 1930 é um assunto complexo da história brasileira, ela não foi uma revolução social, representou foi o crescimento e a reestruturação do Estado, logo se transformou em permanente, fez surgirem os ministérios, a bandeira de moralizar a vida política, acabar com a fraude eleitoral, desenvolver o país e diminuir a miséria do campo. Eles, os tenentes, achavam que o Brasil necessitava de profundas reformas, o que só seria possível com o fim da dominação política dos grandes fazendeiros. Eles pegaram em armas para derrubar o governo e se olharmos o Exército como a parte mais permanente do Estado, sob esse aspecto, realmente os tenentes, são revolucionários, ao menos foi a partir deles que surgiu um capitalismo de Estado, um novo modelo de produção sob controle estatal, e eles estão aí, de volta. Eu gostaria que não estivéssemos em lados opostos¨.
¨Por quê? Não entendi essa sua visão, diferente!¨, e era importante compreender. Afinal, os militares estavam depondo Goulart! Será que Sarita compreendia a marcha da história mais do que o dirigente, que tinha uma visão global do processo, que ele dizia ser contínuo?
¨É aí que discordamos!¨, insistiu.
¨Ora, companheirinho, se o que eles defendem e sempre defenderam é o Estado nacional chegarão a um ponto que terão de defendê-lo porque o imperialismo não vai permitir um Estado forte, e o que isso representa é a continuidade do modelo de Vargas, fortalecer a Petrobrás, Eletrobrás e o nacionalismo. Eles terão que fazer isso¨.
¨O senhor acredita?¨, perguntou o nordestino.
¨Senhor é a senhora sua mãe, já disse, mas suponho que seja possível que aconteça isso, brevemente. O imperialismo vai incomodá-los, aliás, a Academia de Ciências de Moscou tem um estudo muito bom sobre o papel dos estados nacionais na luta entre os países pobres e ricos¨.
Discípulo de Lenine, persuasivo, sem impor as idéias, simples sem ser banal, o dirigente mesclava marxismo com a visão geral de todas as coisas, deixando espaço para o interlocutor inserir perguntas.
¨A Coluna Prestes nasceu deles¨, completou Humberto, ¨e os generais de hoje são os tenentes naquela época, só que, agora, o anticomunismo e a guerra fria os transformaram em defensores das oligarquias e do capitalismo, a as propostas de Goulart, as reformas, se aplicadas, abalariam a estrutura do poder, com as massas, então, seria uma revolução bolchevique¨.
¨Os generais de hoje¨, observou Sarita, ¨são remanescentes do movimento tenentista de 1922, eles sempre estiveram presentes em todas as ações políticas que se desenvolveram desde então e agora, para fazer frente à proposta de Goulart de nacionalização da economia se articularam com apoio do governo norte-americano. O importante é entender, companheirinho¨, e Sarita, chegando-se mais para perto, pediu ao dirigente:
¨Ajude-me a recapitular, vai¨.
Analisando em profundidade, com um olhar objetivo, independente e grande senso político, o dirigente trouxe novas reflexões em torno da Revolução de 1930 e do próprio golpe:
¨É difícil olhar o passado sem fazer uma análise mais profunda da época histórica, e a questão fundamental aqui é entender o que e porque está acontecendo. O que eu posso dizer sobre os tenentes, além do simples questionar e esclarecer? Que o seu projeto não é muito diferente do de Vargas, trazer o Brasil para o Século XX, sair do país agrícola para o industrial, montar a infra-estrutura da indústria pesada. Só posso dizer que, à duras penas, há décadas, desde 1930 o Brasil tenta construir-se como nação autônoma, moderna, e sempre que dava um passo, dava-se também a reversão, a maior delas tendo culminado no suicídio de Vargas, dez anos antes, em 1954, provocada por aquela mesma gente, civil ou fardada, a serviço da ´coincidência´ de interesses dos poderosos locais e externos, dos Estados Unidos. A crise de 1929 foi também a crise do nosso país, sem ela Getúlio e os tenentes não fariam a revolução de 1930, que impôs o capitalismo industrial às oligarquias rurais, para modernizar o Brasil; a crise da bolsa de valores de Nova Iorque não só afetou a economia mundial como teve efeitos devastadores sobre a brasileira, na medida em que países como os Estados Unidos deixaram de importar café, as exportações caíram a um nível baixíssimo, as vendas despencaram, os capitais estrangeiros deixaram de afluir, despencaram os empréstimos, vieram a recessão, o desemprego, Getúlio, a Revolução de 1930 e o Estado brasileiro, intervencionista como o de Mussolini, na Itália, e o de Hitler, na Alemanha, mas foi com ele que o Brasil entrou realmente no século 20. Na América Latina inteira houve deposições de governos oligárquicos, surgiram governos autoritários que representava os interesses de vários grupos sociais e não ais exclusivamente dos fazendeiros e exportadores. Os Estados intervencionistas que surgiram, como aqui, interviam em tudo, na economia, na educação, na saúde, nas relações trabalhistas e em todas as áreas da vida social, nas relações entre os patrões e os empregados. O que os generais vão fazer de imediato é afastar o núcleo dirigente que cerca o Goulart, os políticos de esquerda e os militares nacionalistas, e, depois, neutralizar os jornais, sindicatos, a UNE, tudo o que se identifica com ele. O teu amigo gaúcho tem razão, Vargas é um trabalho que ficou pela metade e embora eles, de certa forma, o tenham derrubado, sabem que foi Getúlio quem assentou o nacionalismo e a base da industrialização do Brasil. Por exemplo, por causa da política nacionalista do petróleo houve o congelamento dos empréstimos norte-americanos ao Brasil. Getúlio criou as companhias Vale do Rio Doce, Siderúrgica Nacional, Petrobrás, Eletrobrás e numerosas outras estatais. O país deve isso ao velho e Goulart não procurou por isso que está acontecendo, é que é o mesmo o modelo de desenvolvimento e esse modelo de desenvolvimento getulista é que é alvo das manobras de desestabilização do governo. Só me preocupa é que os golpistas de hoje são antigetulistas, portanto entreguistas de nossa economia. ¨
À lembrança de Seu Alberto levou-os à janela, no exato momento em que o corpo chegou, coberto com flores e a bandeira verde, amarela e vermelha do Rio Grande do Sul.
¨Vocês sabiam que eu decorei a Carta Testamento, de Vargas, escrita com seu próprio sangue em 24 de agosto de 1954? De tanto que ouvi minha mãe repeti-la, aprendi-a”.
¨Vai, fala aí¨, sugeriu o dirigente, ¨essa carta ainda incomoda muito¨.
...
Leia amanhã o Capítulo XLVI
Jornalista, escritor e poeta norte-rio-grandense
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