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comTEXTO : 31 de Março, 1964
O dia do golpe
24/10/2005- Talvani Guedes da Fonseca
CAPÍTULO XXXV
Se mal a conhecia, como pôde amá-la? De qualquer modo, parecia que ninguém a conhecia tão bem quanto o espanhol e ocorreu-lhe que talvez fosse melhor mesmo evitar saber a verdade porque, para quê saber, se não poderia fazer nada? Talvez a verdade fosse mais inconveniente do que esperava.
Fora enganado e pronto, contudo o espanhol poderia esclarecer muita coisa:
¨Você quer me contar algo?¨
¨Nada, nada... nada, mismo¨.
¨Devo admitir que fui um idiota¨, disse, com uma sensação de alívio.
Ela inventara a faculdade, o trabalho voluntário com os menores da Apae, a ¨atração¨ declarada no primeiro encontro, era tudo mentira, nem precisaria perguntar ao espanhol, o seu silêncio e sua cara confirmavam tudo; e fora tudo terrível, sim, tivera uma tarde terrível, sim; fora um teste de resistência, sim, mas ia superar o sonho do amor perdido e pronto, não havia mais porque continuar com ela e muito menos dirigir-lhe a palavra.
Vivera o momento e o momento passara, mas algo de bom tinha que resultar da amarga experiência com Desdê, talvez nem se recuperasse mas a verdade é que não queria mais falar com ela nem dela porque nada era mais excitante como antes. Será que só ele não percebera quem Desdêmona era, o que todo mundo parecia saber? Não era para ficarem juntos mesmo e foi a última vez que falou com ela.
No entanto, o que Manolo quis dizer?
Mudaram de assunto. Nem todas as notícias eram boas, se animadoras algumas, outras, a maioria, eram perturbadoras:
¨Parece que Goulart viajou, foi visto pela última vez indo para o aeroporto, pero, que va hacer em Brasília, se tudo está aqui?¨
A pior das más notícias:
Sabes aquele estudante tagarela de hoje de manhã? Foi preso no Caco¨.
Era preciso entender de tudo, de muita coisa, ao menos para entender o que estava ocorrendo, e ele, o imigrante espanhol que não gostava de expor suas idéias, integridade e crença no que achava certo, sabia, mas como era difícil compreendê-lo! Manolo era mais do que um grande e divertido ser humano, homem comum, com traços comuns, prestativo, amigável, compreensivo, que sabia de tudo e era de confiança, homem bom, de pé no chão, humano. Um cara e tanto, como se dizia no Rio!
Seria anarquista como o espanhol da piada, àquele, que ao chegar num país, pergunta se há governo e se há es en cuentra?
Não, quando muito Manolo seria apenas uma seqüela viva da ditadura franquista.
Quem poderia saber o que passou no seu País Basco nos primeiros anos de sua vida?
Conhecera Guernica?
Perdera algum parente, algum ente querido?
Não, o espanhol era só uma dessas pessoas em quem se pode confiar apenas por serem boas, de uma integridade e honestidade comoventes. Por que motivo o ajudava não sabia, talvez pelo hábito de incentivar as pessoas, mas gostava de escutá-lo, nada lhe escapava e ainda por cima sabia mudar de assunto na hora certa:
¨Así soy yo, pero acá la situación está muy complicada, no dá mas para reverter el processo¨, disse e tentou articular um raciocínio para explicar la situación:
¨Se Goulart não anunciara la nacionalização de las refinarias, y lo sabia que no seria bien visto, que desafiava la supremacia de los ianques, los Estados Unidos, y todavia hay la história de desapropriação de tierras para reforma agrária, todo eso hay mobilizado los conservadores y la classe média, estos si, estan em apoio abierto a esse golpe de Estado¨, indagou, no meio da frase: ¨Alguna novidade importante? Vistes algo, alguna cosa interessante, adonde fuistes?¨
¨Pelo que vi as coisas não parecem boas, mas por onde andei vi e houve de tudo¨, e contou dos provocadores na frente da UNE, dos lençóis brancos nas janelas, da perseguição aos meninos e da parada do jipe, só omitiu Desdêmona, e Manolo relatou consternado o que ouvira no rádio, que o comando do Exército no Recife tinha aderido ao golpe e que, em São Paulo, estudantes de Direito do colégio e da universidade Mackenzie se exercitavam para caçar comunistas nos stands de tiro dos clubes Pinheiros, Paulistano e Harmonia:
¨A me me dijeron que aqui los milicos ocuparam a Light, o gasômetro, a telefônica, a companhia de água, por supuesto, la ciudad está nas mãos de elles, que puedem explodir de todo, desde trens hasta aviones en el aire, porque son todos professionales y sabem exatamente contra quien luchan, elles son entrenados para matar. Hoy, por la madrugada, las instalaciones militares de Rio de Janeiro, primeiro las que davam sinales de lealdade ao presidente, rapidamente fueram tomadas y ao contrário de lo que se piensa, el objetivo de essa ofensiva militar es resolver tudo com um golpe só, sin la sangre, incluso en su tierra, nel Nordeste, que parece es adonde el Exército está mais unido. Aqui a coisa ainda não é unânime, es incerta la posição de la Marinha y la Fuerza Aérea apóia la revolta pero está hesitante, dividida.¨
¨Alguém me procurou, perguntou por mim?¨
¨Nadie, ninguno. Ni el señor Alberto, passó por aqui às quedas, bêbado que só ele... Ah!, hubo un apartado que fue invadido y vasculhado, seqüestraram el proprietário ¨...
Tomou um susto.
Seria mais um resultado negativo? Teriam localizado o dirigente?
¨Em que bloco foi?¨, perguntou.
¨En el tuyo. Que te parece?¨
¨Caralho! Não será coincidência? Você viu a pessoa ser levada?¨
¨Usted se preocupa por demás, pero ahora no te preocupés pués no hay relaciones com su compañero y si no hay és que no es nada con usted¨.
Prosseguindo, em voz baixa, quase secretamente, disse Manolo:
¨Boato ou informação, Goulart parece que está a caminho de Brasília; logo para onde, para um lugar sin ninguna tropa, un error fatal! Ir para Brasília, adonde já se viu? Que burrice!...¨, comentou, exaltando-se: ¨El tiempo está a agotarse y otro error cabal fue subestimar por demas lo que los generales poderiam hacer; fue querer hacer de los sargentos, soldados, cabos e marinheiros su primera linea de defensa quando llegase el momiento cierto, e el momiento aí está, e todo se parece com 1936 en España, tanta estultice cometida por nada! Estos militares vienem para ficar y eso puede durar el mínimo de veinte anos!¨
¨Que é isso, Manolo? Vira esa boca prá la!¨.
Não queria acreditar nisso:
¨O meu amigo que está lá em casa tem uma explicação, ele diz que Goulart não quer pôr seres humanos em risco, mesma explicação, aliás, que me deu seu Alberto. Se Goulart empregar a violência, milhares de pessoas poderão se ferir. Eu também acho, o silêncio foi a forma que ele achou para manter a paz.¨
¨Por quê este hombre sequer ousa reagir ou defender-se?¨, perguntou: ¨Vai deixar no total abandono militares das patentes menores, milhares de estudantes, operários, intelectuais, sindicalistas?¨
Interrompendo, pensativo, abaixou-se para pegar alguma coisa sob o balcão:
¨Talvez a única compensação seja ver seu nome entrar para a história¨.
Entregou-lhe uma sacola com duas garrafas e convidou-o a um trago:
¨Sentate, anda, vamos tomar um vinho. Quieres?¨
¨Não, sei que preciso me distrair, mas não vou beber e essas garrafas, só se for para eles; com tantos problemas, preciso ficar sóbrio¨.
¨Quién son ellos?¨
¨Um, você já conheceu, é aquele que me procurou de manhã, e o outro é um primo que chegou depois do almoço¨...
¨Ah!, si... Bueno, eu lamento por não ser mais prestativo num momento como este¨.
Trazendo um prato de queijo molhado no azeite, cumprimentou-o o esquivo e tímido sócio do espanhol, o sempre reservado señor Agostin, sempre tímido com estranhos:
¨Necessito hablar contigo¨, disse, com um aperto de mão discreto, quase neutro, mas havia tristeza em sua voz.
De pouca conversa, lacônico, era um homem que quase nunca tinha nada a dizer, um pouco mais velho do que Manolo, porém muito mais conservado. Estendendo um copo, pediu vinho:
¨Me pone un a mi también. Acercate y escuchame, periodista, tengo una cosa a decirte. Sabes del señor Alberto? Está enfermo, precisou de atendimento hospitalar de emergência. Tuvo que ser removido para o Souza Aguiar, dicen que está mal, muy mal, em coma. ¨.
¨O que houve?¨, e estava tão tenso que Manolo adiantou:
¨Corazón! Teve um ataque cardíaco, foi hospitalizado com problemas respiratórios¨.
¨Desejo que ele fique bem e que se recupere logo¨, disse.
Manolo desculpou-se por não havê-lo informado antes e Agostin sorveu alguns goles, vagarosamente discretamente riu e de modo divertido com polegar para cima assinalou que estava tudo bem:
¨Esqueça isso tudo¨, disse no seu ouvido, antes de confinar-se na cozinha, ¨la vida es solo amargura, toma mas um poco de viño y vaias para su casa, descanse,¨ aconselhou e mudou o sinal para negativo, o polegar para baixo:
¨Esqueça essa mujer¨.
Pois é, até o discretíssimo Agostin estava por dentro.
...
Leia amanhã o Capítulo XXXVI
Jornalista, escritor e poeta norte-rio-grandense
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