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comTEXTO : 31 de Março, 1964

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31 de Março, 1964
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O dia do golpe
04/11/2005- Talvani Guedes da Fonseca



CAPÍTULO XLVI

Contou que estava no Salesiano quando correu a notícia de que Vargas se matara, padre Mário mandou os alunos embora e ele e os dois irmãos maiores fizeram o longo caminho da Ribeira ao Tirol, a pé, ônibus não havia, e quando chegaram em casa, ajoelhada na sala, diante do retrato do presidente, do homem que deu camisa ao pobre, conforme diziam seus pais. Professora de jardim de infância, a mãe rezava, ouvia a carta, transmitida em ondas curtas desde o Rio de Janeiro pela Rádio Nacional e quando saiu no Diário de Natal a íntegra, ela lia em voz alta, todo dia, a carta do velho, que dizia, e ele recitou-a dramaticamente, igual à mãe fazia, só que não chorava, como ela:

¨Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.

¨Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.

¨Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.

¨Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.

¨Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História¨.

Nos dez ou quinze minutos que ele levou para dizer a carta inteirinha, ninguém deu um pio.

Exímio argumentador, não era difícil acompanhar o seu raciocínio, o dirigente tomou de vez a palavra, como um paciente professor de mente magnífica, estruturada nos princípios da lógica, uma escola e capacidade imensa para achar as semelhanças, comparações. Bom humanista que era, o dirigente interessava-se por tudo o que se passava em sua terra e em terras alheias, e, extremamente concentrado, com simplicidade e raciocínio engenhoso, gostava de explicar tudo, desde o começo:

“Porém, de forma elíptica”, dissera-lhe Humberto, pela manhã.

Hábil pedagogo, o dirigente usava expedientes didáticos para ajudar à compreensão da sua extraordinária concepção política e percepção da realidade:

¨A política nacionalista de Getulio Vargas quanto à exploração do petróleo teve decisiva influência em sua deposição pelas Forças Armadas, em 29 de outubro de 1945, e na crise política de agosto de 1954. Imaginem só a que ponto chegamos, e como nada mudou; em setembro de 1945 o embaixador americano discursou na Associação Brasileira de Imprensa e pôs em dúvida as intenções de Getulio realizar eleições. Você lembrou bem, as questões da energia elétrica e do petróleo fazem parte da Carta Testamento. Getúlio se empenhou muito para emancipar o país na produção energética, enfrentou poderosos interesses internacionais, e este foi um dos motivos da conspiração que o derrubou. Quando ele anunciou em 1953 que criaria a Eletrobrás, o preço das ações das multinacionais que monopolizavam a produção e distribuição de energia no Brasil, desabou nas bolsas de valores de Nova Iorque. Então, com a criação da Petrobrás, aí, sim, ele afrontou os gigantes internacionais de petróleo. Vargas tentou preservar para a Petrobrás todos os direitos de exploração, utilização e novo refino. As empresas americanas, lideradas pela Standard Oil, reagiram. O Brasil era um dos maiores mercados de petróleo do hemisfério, controlado pela Standard, Shell, Gulf, Texaco e Atlantic. Se Vargas expandisse a pequena capacidade de refino do Brasil através da Petrobrás, as empresas seriam excluídas de todo o crescimento neste mercado crucial”.

Humberto pediu a palavra:

¨O Brasil estabeleceu todo o seu modelo de crescimento econômico e político com Vargas, a tentativa de desenvolvimento autônomo, comprometido com a distribuição de renda e com a independência econômica do país, começou com a Petrobrás, a Companhia Siderúrgica Nacional, a Justiça Eleitoral, o Tribunal de Contas, a Companhia Vale do Rio Doce, o Ministério do Trabalho, o Departamento Nacional de Obras e Saneamento, o Correio Aéreo, o DNER, o Ministério da Educação e Cultura, a Consolidação das Leis do Trabalho, o Conselho Nacional de Petróleo, a Eletrobrás, o Banco de Crédito Cooperativo, a Companhia Nacional de Álcalis, o Instituto de Açúcar e do Álcool e a Previdência Social. E podemos citar também a Legião Brasileira de Assistência, o Banco da Amazônia, o Conselho Nacional de Desportos, a FNM, Fábrica Nacional de Motores, o IBGE, a eletrificação das ferrovias, o Ministério da Saúde, o Conselho Nacional de Pesquisa, a Universidade de São Paulo, a Justiça do Trabalho e com tudo isso, como estão fazendo com Goulart, foi derrubado¨.

¨Não esqueça que ele foi um dos primeiros presidentes no mundo a decretar a moratória¨, apartou o dirigente, ¨ele dizia que a dívida externa é o pior instrumento de sacrifício das grandes massas¨.

...

Leia amanhã o Capítulo XLVII

Jornalista, escritor e poeta norte-rio-grandense

  

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