|
comTEXTO : 31 de Março, 1964
O dia do golpe
22/10/2005- Talvani Guedes da Fonseca
CAPÍTULO XXXIII
Não achar a clínica foi um duro golpe. Ela ainda tentou usar uma última arma, a ambivalência de intenções:
¨Talvez a gente possa fazer tudo de novo, verificar casa por casa¨, disse numa última iniciativa, com estudada ingenuidade.
¨Nesse caso¨, disse, ¨seria melhor você chamar àquele veado ali atrás, na motocicleta¨.
¨Como assim?¨
¨As mentiras se acabaram, menina¨.
Já sofrera o bastante, chegara hora de ir embora e forçado a tomar uma decisão entre sumir dali ou insistir na procura de uma clínica de aborto que jamais poderia situar-se naquele triste meio, abriu o jogo:
¨Não pense que vou estar sempre aqui pra você, a pé ou de carro volto ao Leblon antes que escureça o dia, e para isso só falta meia hora¨.
O que tinham em comum? O que ele representava para ela e até que ponto estaria grávida?
Apesar de intimamente não ter descartado a possibilidade de ser usado, horas antes não a imaginaria dessa maneira. Acreditara nela, sim, e mesmo consciente da destruição que o golpe estava causando, largara tudo para ajudá-la. Entretanto, definitivamente, a cada minuto que passava ficava mais claro que não fora destinado a viver com ela, como casal, porque nunca seriam a mesma pessoa e assim, Desdêmona era página virada, coisa do passado, no máximo reduzir-se-ia a material para um romancista.
¨Você acha que não sofro?¨, murmurou, e Desdê fez que não entendeu; o dela não era um sentimento sincero. Se umas pessoas enxergam e outras não, ele era cego, mas ainda assim não se dava por vencido.
´Você quer falar comigo, é? Sobre o que você quer falar? Não há nada na minha vida que lhe interesse.¨
Descera assim ao fundo do abismo, Desdêmona se divertira à sua custa, magoara-o, porém, ainda que perdida a idéia de conquistá-la, de tê-la, embora ressentido, respirou aliviado. Se projetara Desdêmona em suas fantasias não tivera tempo de entender a importância que lhe dera, uma história que nunca deveria ter acontecido e que terminava ali, da forma súbita como começara.
Pela primeira vez no Rio de Janeiro era como voltar para casa.
Se estivera durante todo o tempo preocupado, pensando que a aventura prejudicaria sua tarefa, no fundo, esperava que não acontecesse nada e assim, embora desalentado, desgastado emocionalmente, em estado deprimente, com o vazio à sua frente, parando de novo nas esquinas, nas ruas, tudo passava como no filme de Felini.
Tinha alguma coisa a aprender com tudo aquilo, ao menos já descobrira que se apaixonar não era nenhuma catástrofe.
O que deveria ser uma tarde feliz se transformara em pesadelo.
Para não criar mais paranóia do que cabia naquele preguiçoso fim de tarde, fez um grande esforço, intencionalmente, para não olhá-la. Afinal, quase se apaixonara por ela, a pessoa errada, que esperava guardar além do desprezo, e só o lado bom da história, a certeza de que nunca houve vínculo verdadeiro com ela, e depois dela nada importaria mais, posto que, a felicidade continuava indisponível.
Convicto de que a humilhação terminara, de que apenas fora iludido por uma mulher astuta, sem nenhuma aspiração, com idéias diferentes das suas sobre convívio humano, sorria por sentir que a paixão terminara; e a humilhação, também, terminara e desfeita a fantasia, tudo voltaria à normalidade.
Quem diria que tudo terminaria tão rápido e daquela maneira? Era tarde demais para arrepender-se. Na próxima vez, não seria o escolhido, escolheria e assim, tomada essa resolução, não levou muito tempo para se acalmar, bastava saber o quanto seria difícil conviver com ela para desistir dela, esquecê-la e partir para outra, aliás, a única coisa que com certeza sabia. Dali para frente acabava tudo; acabava-se em nada um amor que não houvera, e embora superar fosse difícil, a consciência não pesava tanto e embora arrasado, sentia-se, entretanto, mais tranqüilo, descansado.
Ao invés de exacerbar, inconformado, abatido, sem ser importunado por barreiras, manifestações, tentava afastar a decepção e a raiva.
Não lamentava o que houve, nem rancor restou e a incrível história de Desdê estava perto de acabar. Não terminava do modo que ele queria, fora afetado em cheio por ele e pela exaustiva e estressante tarde, emocionalmente exausto, amargurado, viu a tristeza chegar ao olhar Desdê com outros olhos, sabendo que depois dali, em direções completamente diferentes, qual cada qual tomaria seu caminho, que não fora definitivamente uma simples história de amor e portanto só poderia terminar em repugnância, mas ele não esperava sair magoado, talvez nem amizade fosse, e nada disso importava mais. Sentia-se desconfortável, sim, mas feliz porque pronto para retornar da melhor forma possível à tragédia maior do dia, o golpe militar em marcha, e suas conseqüências.
Numa total ausência de si mesmo sorria intimamente uma derrota que não doía muito por enquanto, porém, era grande o peso da melancolia e ele torcia para ter sido só uma leve e fugaz ilusão, uma complicada relação afetiva que não chegara nem a ser um namoro rápido, casual; arriscada sim, como devem ser as relações e os romances rápidos iniciados na mentira, planejados, não feitos para durar.
Seria estranho após tudo o que houve, manter ao menos a amizade, e embora merecesse saber o que houve, sem ela formalmente admitir a culpa, todo o mistério que envolvia a gravidez ficava como estava.
Não dava para acreditar que alguém pudesse inventar uma encenação como aquela e se quisesse decifrar o enigma, por trás de cada dúvida outra havia e melhor seria deixar para trás, como se nada tivesse acontecido, porém o fato indiscutível era que ali, à tardinha, a vida os separava sem ter nada nem ninguém que pudesse fazer nada a respeito.
¨Não me chateia muito o que você fez, mas a forma como você fez. Manolo já tinha me dito algo sobre a lei da vantagem que vigora por aqui, mas vamos esclarecer uma coisa¨, disse ele, ¨eu não gosto mais de você, eu gostava, Desdêmona, só não esperava por essa¨.
Mais vulgar, perdera o toque de inocência, ela respondeu, secamente:
¨Eu espero que você um dia tenha um problema e precise da minha ajuda¨, e permaneceu muda, totalmente indiferente.
Ele viu que estava só de novo, o que não assustava porque estava, enfim, disposto a esquecer, e a história continuaria oculta em mistério; se insistisse, começaria tudo de novo.
Como ela não falara nada, a resposta ficaria escondida no significado de um olhar, indício puramente circunstancial e a única pista disponível.
...
Leia amanhã o Capítulo XXXIV
RETRANCA>
Jornalista, escritor e poeta norte-rio-grandense
Compartilhe:
|
|