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comTEXTO : 31 de Março, 1964
O dia do golpe
28/10/2005- Talvani Guedes da Fonseca
CAPÍTULO XXXIX
O ambiente ficou péssimo, pesado. Apesar da provável morte do gaúcho e do golpe em marcha que todos aparentemente haviam esquecido ou tentavam esquecer, naquele clima soturno ainda havia lugar para excentricidades. O dirigente servira vinho e silenciosamente todos brindaram, inclusive o contato, com Grapette.
Muito vivaz, desde o primeiro olhar, um olhar de ar azul, de brilho azul, penetrante, Sarita cativara-o.
Seus olhos pareciam seguí-lo mas ele, desconfiado, abalado ainda com o fora de Desdêmona, envolvido que fora desde o amanhecer numa complicada rede de sentimentos e emoções, para não arriscar uma interpretação artificial, confessou:
¨Eu fico feliz por você estar presente¨, e ela começou a cantar baixinho, recitou os primeiros versos da Canção do Subdesenvolvimento, de Carlos Lyra e Chico de Assis, numa voz de contralto meio soprano, num lindo tom nostálgico que lembrava muito a da menina Nana Caymmi, em Acalanto, a música de encerramento das transmissões da Tv Tupy:
¨O Brasil é uma terra de amores
Alcatifada de flores
Onde a brisa fala amores
Em lindas tardes de abril
Correi pras bandas do sul
Debaixo de um céu de anil
Encontrareis um gigante deitado
Santa Cruz, hoje o Brasil¨
Um ano antes, em Natal, trepado num galho de mangubeira da rua Jundiaí, ele ouvira pela primeira vez a canção, apresentada por um grupo do Centro Popular de Cultura, dirigido pelo poeta Ferreira Goulart, no auditório da recém criada Faculdade de Jornalismo, e sabia-a de cor, assim como as duas músicas do outro lado do disco, um compacto, o retrato do Brasil no samba ¨João da Silva, Cidadão Sem Compromisso¨, que não manjava disso que o francês chama l´argent e que ¨pagava royaltie, dinheiro disfarçado, tapeado desde as cinco da manhã, que ¨com Palmolive/ao chuveiro dava combate/usava Colgate/fazia a barba com Gillette/usava Acqua Velva/pagava roialtye da fome/do pão que comia/ao leite em pó com Nescafé¨ e que ¨movido a Esso ia de frente pro batente¨, e ele até cantou baixinho o trecho em que dizia que João da Silva era u ¨nacionalista de modo diferente/pois tomava rum com coca-cola/e tudo esquecia/ia com madame e ver/um bom cinemascope e ela usava nylon/e ele casimira inglesa/entornava uísque em vez de chope/e pagava royaltie dormindo/quando esqueci a luz acesa/e dizia que não gostava de samba/e achava o rock uma beleza...”
Teve que parar o que cantava só para si mesmo, porque a Canção do Subdesenvolvido instalara no recinto um clima de magia, cantavam-na em voz baixa e a impressão que se tinha era de que, em homenagem a seu Alberto, muito mais do que por raiva e em protesto contra o golpe, um coral de milhares de vozes cantava para todo o Brasil, e o dirigente era o tenor:
¨Mas um dia o gigante despertou
Deixou de ser gigante adormecido
E dele um anão se levantou
Era um país subdesenvolvido¨
Na pausa, os quatro murmuraram o refrão:
Subdesenvolvido, subdesenvolvido, três vezes, e como se houvera antes um ensaio, o contanto prosseguiu:
¨E passado o período colonial
O país se transformou num bom quintal
E depois de dadas as contas a Portugal
Instaurou-se o latifúndio nacional, ai!¨, e assim, num crescente a música foi enchendo a sala, o espaço do Conjunto, atravessou o canal do Jardim de Alá e invadiu o mundo, sucessivamente cada qual cantando sua parte e depois do refrão chegou a vez dele:
¨Então o bravo povo brasileiro
Em perigos e guerras esforçado
Mais que prometia a força humana
Plantou couve, colheu banana..
Bravo esforço do povo brasileiro
Que importou capital lá do estrangeiro¨...
Novamente o refrão e o grupo todo, contagiado, em vozes várias, como numa despedida, foi levando:
¨As nações do mundo para cá mandaram
Os seus capitais desinteressados
As nações, coitadas, queriam ajudar
E aquela ilha velha ajudou também
País de pouca terra, só nos fez um bem
Um grande bem, um ´big´ bem, bom, bem, bom¨...
Cômico, o contato, que interpretara a peça na UNE, deu seu show:
¨Nos deu luz, ah! Tirou ouro, oh!
Nos deu trem, ahhh!...
Mas levou o nosso tesouro¨, e ohoooo, fizeram todos, estava lindo fazer algo sem nada ter sido combinado, espontaneamente, e mais uma vez foi sua vez de cantar em ritmo de rock, balançando-se:
¨Houve um tempo em que se acabaram
Os tempos duros e sofridos
Pois um dia aqui chegaram os capitais dos Estados Unidos¨..., e todos o imitaram como cantor americano, ridículo, na palhaçada:
País amigo desenvolvido
País amigo, país amigo
Amigo do subdesenvolvido
País amigo, país amigo
Os nossos amigos americanos
Com muita fé, com muita fé
Nos deram dinheiro e nós plantamos
Nada mais que café
Em uma terra em que plantando tudo dá
Eles resolveram que a gente ia plantar
Nada mais que café¨...
E como crianças eles brincavam com a Canção do Subdesenvolvido.
O dirigente gritou, e agora já nenhum deles pensava em falar baixo:
¨Bento que bento é o frade!¨, e todos responderam:
¨Frade!¨
¨Na boca do forno!¨, continuou:
¨Forno!¨
¨Tirai um bolo!¨
¨Bolo!¨
¨Fareis tudo que seu mestre mandar?¨
¨Faremos todos, faremos todos...
Pareciam crianças.
Todos cantavam o refrão, subdesenvolvido, subdesenvolvido, voltavam-se à canção, um puxava e todos respondiam:
¨E começaram a nos vender e a nos comprar...
Comprar borracha
...vender pneu
Comprar madeira
...vender navio
Pra nossa vela
...vender pavio¨
E o magnífico coral entusiasmava-se:
¨Só mandaram o que sobrou de lá
...matéria plástica,
Que entusiástica!
Que coisa elástica!
Que coisa drástica!
Rock-balada
...filme de mocinho
...ar refrigerado e chiclete de bola
E coca-cola! Oh...¨
Levantando-se, ocupando o centro das atenções, pulando feito uma doida, algo encantador de se ver, cheia de vida, de energia e paixão pelo mundo, espalhando o cheiro e a sedução natural de fêmea à cada rodada em que pela calça colante deixava antever o quanto seriam macias e grossas suas coxas brancas, Sarita, em sua plenitude de mulher, insinuando sexo, cheia de alegria e de vida, exuberante, gloriosa, magnífica, num gesto absolutamente calculado de sedução, começou a rodopiar no meio da sala.
Criando uma atmosfera resplandecente no ambiente, nua sob a camiseta estufada como um balão, sem sutiã, só de calcinha, ela girava, girava e parecia não se incomodar se viam pelos cantos dos olhos as marcas que a fina calça colante de Helanca deixava antever, o traço em relevo de um rego, um corte vertical, perfeito, o meio, a vagina.
Sarita se destacava entre todos não por ser mulher; pelo cio.
Havia uma espontaneidade diferente nela.
Como se mudasse de personalidade, possuída, embora gritasse sem extravagância ¨êparrê, Iansã!¨ Com os olhos brilhando, com delicadeza e graça Sarita mostrou seu lado sedutor, parecia a reencarnação de uma divindade negra ao iniciar a inusitada exibição de despretensioso e leve solo de criatividade, ao mesmo tempo vigoroso, arrebatador e delicado, espalhando um sorriso radiante alegria à sua volta. Afastou mesa, cadeiras, fez formar-se a roda em torno de si, da princesa vívida do Partido, e todos passaram a bater palmas, num típico coco nordestino, inclusive, envolvendo-se, até o desanimado contato dançou:
¨Lá, lá, la, la, la, la
Êh, êh, meu boi
Êh, roçado bão
O meior do meu sertão¨...
Ninguém conteve o riso no coro final:
¨Comeram o boi...¨
Irresistivelmente atraído, animado pela força do grupo e pelo vinho, foi o nordestino quem ficou de pé, para dizer a sua parte:
¨O povo brasileiro
Tem personalidade!
Não se impressiona com facilidade
Embora pense, dance e cante como desenvolvido
O povo brasileiro
Não come como desenvolvido
Não bebe como desenvolvido
Vive menos, sofre mais
Isso é muito importante
Muito mais do que importante
Pois difere os brasileiros dos demais
Pela... personalidade, personalidade
Personalidade sem igual¨..., exclamou, quase sem ar, para todo o grupo completar, encerrando a música:
Porém... subdesenvolvida, subdesenvolvida!...
...e essa é que é a vida nacional!¨
E assim, com esse apelo, aproximava-se o dia 31 de março de 1964 do seu fim.
...
Leia amanhã o Capítulo XL
Jornalista, escritor e poeta norte-rio-grandense
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