O eSocial e a vagabundagem 05/11/2015
- Pasquale Cipro Neto*
Pela enésima vez, vou citar Paulo Freire neste espaço: "A leitura do mundo precede a leitura da palavra".
Bem, num país cada vez mais ignorante, talvez convenha lembrar que o advogado Paulo Freire foi um dos maiores educadores do século 20.
Autor de vastíssima e importante obra sobre pedagogia, laureado mundo afora por um sem-número de universidades, o grande Mestre pernambucano foi banido do país pela mil vezes maldita ditadura militar.
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Posto isso, quero trocar duas palavras sobre a leitura de determinados fatos da nossa triste realidade.
Quando a operadora de telefonia, internet, TV a cabo etc. diz que vai mandar um técnico e que o cliente, quando muito, pode escolher um período do dia, ou seja, não pode determinar o horário dessa "visita", qual é a leitura que se faz disso?
Que somos todos vagabundos, que não temos o que fazer, que temos de ficar à mercê da agenda do técnico etc.
Em outras palavras, pagamos pelo serviço e somos transformados em escravos da operadora.
E o poder público? Como age nisso?
Não age.
Certamente não age porque não sabe ler a realidade, ou, no conceito de Paulo Freire, não sabe fazer a leitura desse mundo.
Não custa lembrar que certo ex-ministro da Justiça teve problema com uma operadora de celular e resolveu telefonar para a central de atendimento.
Muitos minutos e muita humilhação depois, o ex-ministro "descobriu" que a coisa é como é e resolveu tomar algumas providências (que até hoje são letra morta).
Como se vê, o ex-ministro nem podia fazer a leitura dessa realidade porque a desconhecia, embora fosse de domínio público.
Há um bom tempo, num debate eleitoral, Boris Casoy perguntou aos candidatos o preço do pãozinho.
Ninguém sabia...
O que diria disso Paulo Freire? Como aplicar o conceito dele em casos bizarros como esses? Como é que alguém vai fazer uma boa leitura do mundo se nem conhece esse mundo?
Pois chegamos ao eSocial, o genial programa criado pelo governo para o cadastramento dos empregados domésticos.
Posto no ar poucos dias antes do vencimento da primeira guia de arrecadação sob a nova legislação, o site não funciona.
Milhares de pessoas perderam horas e horas diante do computador para tentar fazer o bendito cadastro e gerar a não menos bendita guia.
Dia após dia, autoridades fiscais, do alto da sua sensibilidade e também do alto do seu conhecimento de mundo, insistiam em dizer que o prazo não seria prorrogado.
Usuários contumazes de óleo de peroba da mais alta qualidade, alguns tiveram a suprema sensibilidade de dizer que, ainda que o sistema se estabilizasse só na quarta ou na quinta-feira, não haveria adiamento (que acabou acontecendo aos 49 do segundo tempo – alguém se rendeu à realidade real!!!).
Que leitura se faz da leitura de mundo dessas criaturas?
Moleza: esses lígneos senhores (também) acham que somos vagabundos, que não temos nada para fazer etc.
Se as "otoridades" pensassem de outra maneira, saberiam que as estradas, os hospitais, os transportes, as ruas, as calçadas, as escolas, as polícias etc. que nos dão fazem do nosso dia a dia um inacreditável inferno e entenderiam de imediato que essa tortura já basta.
A cegueira é tanta que eles não enxergam o desgaste que o ridículo episódio lhes causa.
A leitura de mundo deles é outra. Somos mesmo vagabundos, incuráveis vagabundos.
É isso.
...
*Professor de português desde 1975, é o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.