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O OUTRO LADO DA NOTÍCIA

Feto é outro corpo
12/11/2015 - Blog de Reinaldo Azevedo - Veja.com

Já comecei textos aqui com esta pegada: sempre que a intolerância dos tolerantes se exacerba, acho que é hora de intervir no debate.

Se atrizes famosas -- nessa área, o Brasil tem mesmo é muita celebridade, que é coisa um pouco diferente -- emprestam sua imagem a uma peça publicitária em defesa do aborto, e elas têm todo o direito de fazê-lo, então é preciso que arquem também com as consequências, inclusive as negativas -- desde que estas se inscrevam num padrão civilizado.

Se granjeiam a simpatia do público com o tatibitate da dramaturgia televisiva e emprestam sua simpatia pedindo doações para o “Criança Esperança”, têm de estar preparadas para as críticas quando vão lá fazer a proselitismo da cureta.


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Escrevo isso porque leio que as atrizes Bruna Linzmeyer e Nanda Costa estariam sofrendo “ataques”, segundo registra VEJA.com, por terem participado de um filmete pró-legalização do aborto.

Vamos ver: ataque é xingamento, é vulgaridade, é agressão injuriosa, caluniosa, difamatória.

Chamar alguém de “hipócrita” porque pede doação para um programa de proteção à infância e depois empresta sua imagem a uma campanha pró-aborto não é ataque.

Trata-se apenas de uma crítica -- com a qual, diga-se de passagem, eu concordo.

Enquanto Caetano Veloso não ditar as regras do jogo do pensamento mundial, é conveniente que as ideias façam sentido e que as escolhas sobre os mais variados temas tenham alguma coerência.

Ora, os fanáticos do aborto têm, porque é o que pensam, de ver cada criança abandonada como um aborto que deveria ter sido realizado, não?

Ou estão obrigados a renunciar a seu credo.

Num disco de 1987, Caetano Veloso cantou uma música que compôs com Toni Costa chamada “Vamo comer”.

Num dado momento, ouve-se lá:

“O padre na televisão
Diz que é contra a legalização do aborto
E a favor da pena de morte
Eu disse: não! que pensamento torto!”

Sem dúvida, o padre retratado na música tinha um pensamento torto.

Mas pergunto: e o contrário?

Eu me oponho a ambos, mas convenham: ser a favor da pena de morte e contra a legalização do aborto ainda faz algum sentido prático.

O absoluto absurdo está no contrário, não é mesmo?

A pena de morte, ainda que eu a abomine, pune de forma estúpida alguém por uma falha grave (salvo um erro judicial).

E o aborto?

Pune quem?

Numa das manifestações contra Eduardo Cunha, mulheres que se opõem ao PL 5.069, que dizem criar dificuldades para o aborto nas hipóteses permitidas em lei (o que é mentira), levantaram uma faixa, consistente com o bordão “Meu corpo, minhas regras”.

Lá se lia: “Meu corpo não é dinheiro na Suíça para ser da sua conta”.

Então vamos pensar.

Não custa.

Não dói.

Se o “Meu corpo, minhas regras” quer dizer que ninguém, homem ou mulher, pode tocar no seu corpo sem sua autorização, salvo nas hipóteses recepcionadas em leis democráticas, então eu apoio.

Aliás, eu reivindico o bordão também para mim.

Mas se isso quer dizer que o aborto é uma questão que só deve dizer respeito às mulheres e, em particular, à mulher que carrega o feto em seu útero, então será preciso admitir, por implicação lógica, que todo aborto é uma mutilação já que o feto seria parte do corpo.

E eu pergunto: trata-se de uma mutilação?

A resposta, obviamente, é não.

E tanto o feto não é parte do corpo da mulher que, realizado o aborto, o corpo dela resta com todos os órgãos que lá estavam antes do procedimento.

Há uma falácia escandalosa aí: O ABORTO SÓ NÃO É UMA MUTILAÇÃO PORQUE O FETO É OUTRO CORPO. E, PORTANTO, SE É OUTRO CORPO, A MULHER QUE O ABRIGA NÃO PODE SER SENHORA ABSOLUTA DAS REGRAS.

Não! Não há absolutamente nada de religioso nessa minha observação.

Eu só estou sendo lógico.

A propósito: ainda que o aborto fosse equiparável a uma mutilação, até onde se sabe, não se mutilam pessoas por aí só por gosto, nem que fosse por gosto dos mutilados.

O argumento não para de pé.

Pensemos ainda um pouco: se o aborto diz respeito exclusivamente a mulher e a seu corpo, ela pode realizá-lo independentemente da vontade do pai.

Isso implica que este possa escolher abrir mão de suas responsabilidades caso a mulher decida ter a criança?

Mais uma: o “meu corpo, minhas regras” deve ter vigência absoluta?

Para os cultores da frase, uma mulher deveria ter o direito de abortar até no nono mês de gravidez?

“Ah, quem faria isso?”

Não importa.

Eu estou fazendo uma pergunta de princípio.

O combo da imprensa descolada

Há, hoje em dia, uma tríade sagrada da militância esquerdista ou nem tanto: só merece o reino dos céus do dito progressismo quem é favorável ao casamento gay, à descriminação das drogas e ao aborto.

Eu fico pensando em que momento essas três coisas, de dimensões tão absolutamente distintas, se juntaram, de modo que ser favorável a uma delas deveria, necessariamente, atrair as outras duas.

É o que eu chamaria de “combo da imprensa descolada”.

Eu, por exemplo, defendo o casamento gay -- eu me oponho é a que seja o Supremo a cuidar do assunto --, mas me oponho ao aborto e à legalização das drogas.

Notem: um gay casado, por acaso, estaria obrigado a abraçar as outras duas pautas?

Em nome do quê?

Vamos confundir o direito ou não de queimar um mato com a destinação que deve ter um feto humano e com uma questão tão antiga à filosofia e ao pensamento como a identidade e a alteridade?

Será, para complicar ainda mais a questão, que consumidores individuais de drogas não podem até se opor à sua legalização porque entendem que, do ponto de vista social, seria uma má ideia?

Sim, eu estou preparado para conviver com a divergência.

Arco com o peso das minhas escolhas.

E gostaria de sugerir às celebridades que arcassem com o peso das suas.

Afinal, ninguém foi convidar a Senhora Anônima para expressar a sua opinião sobre o aborto.

Os prosélitos foram buscar pessoas conhecidas.

E, bem, há quem goste e quem não goste das coisas que elas dizem.

Nos limites da civilidade, reitero, os descontentes têm todo o direito de se expressar.


  

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