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O OUTRO LADO DA NOTÍCIA

O primeiro embate na Bolívia
04/07/2006 - O Estado de S.Paulo

O ¨primeiro capítulo da refundação da Bolívia¨ não foi escrito exatamente como o presidente Hugo Chávez, da Venezuela, havia recomendado a seu epígono, Evo Morales. Chávez havia aconselhado o presidente boliviano a fazer de tudo para obter 80% dos votos, nas eleições para a Assembléia Constituinte, travadas no domingo. Com aquela maioria, seria mais fácil para o antigo líder cocalero aplicar o receituário bolivariano de transformação gradual do presidente da República em ditador, sem romper abruptamente com os aspectos formais da democracia.

Hugo Chávez foi o grande eleitor de Morales. Chegou a transformar um ato de doação de computadores, realizado na Bolívia, em comício eleitoral a favor de seu pupilo. Nos últimos meses, a PDVSA, que não tem negócios no país, inundou as televisões de propaganda. E o canal estatal passou a dedicar cinco horas semanais à retransmissão do programa de Chávez, Alô Presidente. Evo Morales seguiu à risca os conselhos de seu mestre. Assim como Chávez, a primeira coisa que fez foi convocar uma Assembléia Constituinte. Para quem conta com um índice de popularidade de cerca de 80%, deveria ser fácil obter a maioria absoluta da Assembléia. Mas essa popularidade não se traduziu em votos. Seu partido, o MAS, recebeu algo em torno de 54% dos votos - votação semelhante à que Evo Morales recebeu nas eleições presidenciais. Além disso, as eleições obedeceram aos preceitos da constituição vigente, e ela determina que o número máximo de parlamentares que um partido pode obter, de um total de 255, é de 158 representantes. E o partido de Morales ficou longe disso, com 135 parlamentares.

Não é o suficiente para que Morales possa impor automaticamente à Bolívia a tal ¨refundação¨, com características antidemocráticas e hostis à economia de mercado. Mas é muita coisa. O principal partido de oposição ficará com cerca de 60 a 65 cadeiras. As restantes ficarão divididas entre pequenos partidos, com os quais Evo Morales terá de negociar, para formar a maioria de dois terços que controlaria a Assembléia.


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E já se antevê que, mesmo que forme essa maioria, ela não será estável nem garantirá a tranqüila aprovação do programa nacional-indigenista apresentado por Morales quando convocou a Constituinte. Ele terá de negociar ponto por ponto desse projeto de constituição, não apenas com seus aliados de ocasião, mas também com a oposição.

Ocorre ainda que as eleições de domingo confirmaram com números aquilo que já se sabia: a Bolívia está geograficamente dividida, em relação ao projeto de poder de Evo Morales. Na Bolívia ocidental, a parte pobre do país, Morales obteve a maioria dos votos, tanto para a composição da Assembléia como no referendo sobre a autonomia dos departamentos. Na Bolívia oriental, a parte mais rica, educada e industrializada do país, venceu a oposição e a tese da autonomia. Quatro dos nove departamentos em que se divide o país querem um mínimo de autonomia política, administrativa e fiscal. Lutam há muito tempo por isso - na região de Santa Cruz a idéia do separatismo chegou a prevalecer sobre a da autonomia, há alguns anos - e sabem que têm muito a perder se a Constituinte consagrar, como definiu o ministro Juan Rámon Quintana, ¨um Estado que deixe de ser regulador e seja protagonista, que desenhe estrategicamente o destino econômico da nação¨.

Parte desse ¨desenho estratégico¨ está no ¨decreto supremo¨ de 1º de maio: a estatização de toda a exploração e comercialização de gás, petróleo e outras riquezas minerais, somente se admitindo a presença de empresas privadas como sócias minoritárias. Mas há mais. Por exemplo, a introdução de ¨instituições tradicionais¨ - ou seja, os usos e costumes das civilizações pré-colombianas - no sistema judiciário e a adoção de mecanismos da democracia direta. Assim, movimentos sociais, sindicatos e ONGs teriam poderes para rever e supervisionar investimentos e ações do governo. Ao mesmo tempo, o projeto mantém o atual sistema de poder centralizado, negando autonomia às regiões. Como se não bastasse a balbúrdia política que essa mistura de centralismo com democracia direta certamente produzirá, Evo Morales quer transformar a Bolívia - um país financeiramente quebrado e sem estruturas fiscais minimamente eficientes - em um Estado do bem-estar.

As urnas mostraram que haverá resistência cívica a esse programa insano.

  

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