Uma desgraça singular 11/02/2016
- Valentina de Botas - Veja.com
Preciso de um pouco de barulho para me concentrar, o silêncio me faz ouvir coisas; é combustível para a imaginação, veículo possante que me leva para longe do agora. Trabalhando na revisão ou na tradução de um texto, abro a janela para as polifonias do mundo ou ouço música. Também para missões domésticas: lavar a louça, por exemplo, ao som do “Coro dos Escravos” do “Nabucodonosor” de Verdi; ou Luiz Gonzaga cantando “Assum Preto” é o barulhinho perfeito para refazer a barra da calça do uniforme escolar da minha filha. Senão, perco o foco.
Vou me repetir porque as circunstâncias se repetem: nenhum defeito do PSDB o iguala ao PT pela razão bastante de nada se igualar a uma anomalia; nenhum erro de FHC o equipara a Lula porque o caudilho é uma desgraça singular. Para quem os difere apenas pela rapidez maior e escrúpulo menor dos petistas, os objetivos dos tucanos são os mesmos: perpetuarem-se no poder e, de quebra, enriquecer a tigrada.
Ainda que não tivesse sido o melhor presidente que tivemos, o que já começa a soar como uma acusação, FHC é um homem de caráter; Lula, não. No que isso resulta para o país? Para uma resposta possível, convido os leitores, que acusam em FCH um Lula letrado, a contemplarem o Brasil que aquele entregou a este e o Brasil de hoje. Quanto ao primeiro, nem me refiro à revolução socioeconômica do Real, mas somente ao caráter que o governante imprime ao governo.
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No ambiente moral da era FHC, um Procurador-Geral da República não deixaria de cumprimentar o Presidente da Câmara como fez Rodrigo Janot com Eduardo Cunha; parlamentares não vaiariam a Presidente da República no Congresso como aconteceu recentemente, mas, depois da fala dela, tomariam a palavra e confrontariam a governante na tribuna; um vice-presidente da Câmara não desacataria o Presidente do STF como fez André Vargas ao Ministro Joaquim Barbosa há dois anos. E essa desinstitucionalização do país não se desdobraria na abjeção dos blogs estatizados, na patrulha ideológica, na radicalização e rarefação de argumentos no debate.
Tendo FHC governado com dignidade e competência nas circunstâncias dadas, e daí que seja socialista? Essa intolerância desvia o foco do que realmente infelicita o país e despreza o fato de que erros e acertos habitam entre socialistas e não socialistas. Sem socialistas – se modernos, democratas, competentes e honestos – o que fazer de uma democracia reduzida a um só nicho ideológico?
Além disso, não é a aproximação ideológica que leva FHC a ainda constatar em Lula ou no PT alguma legitimidade, mas, talvez, a índole conciliatória do democrata que, de certo modo compungido diante do estilhaçamento de uma ex-liderança, teria a mesma atitude com qualquer outro símbolo caído em desgraça.
Discordo vivamente de FHC sem rebaixá-lo a integrante da súcia e, para evitar que o silêncio do imperdoavelmente omisso PSDB me tire do foco, sonorizo tudo com a polifonia lúcida na permeabilidade dos contrários, lendo e ouvindo quem me ajuda a me concentrar no agora: combater os inigualáveis lulopetistas.