Enquanto escrevo, ali perto, à beira do rio, a maconha corre solta. Suponho, pelas aparências, que nesse povoado de praia no sul da Bahia, entre locais e turistas, só eu não fumo baseado.
Logo mais, o Canadá se tornará o primeiro país do G7 a legalizar o comércio de cannabis. Nos EUA, a Califórnia apontou um caminho, permitindo a venda da droga para finalidades médicas.
De 1996 para cá, 22 Estados, além do Distrito de Columbia, adotaram o estratagema, que funciona como disfarce para a plena legalização. No horizonte de um ano, provavelmente a proibição cairá em mais oito Estados.
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Na América Latina, depois do Uuguai, os parlamentos do México e da Colômbia preparam-se para derrubar as leis que criminalizam a mais consumida das drogas ilegais.
Uma ilha de negação: em pouco tempo, eis o que o Brasil se tornará.
A The Economist (13 de fevereiro) compara os modelos regulatórios para o comércio de maconha implantados nos Estados americanos do Colorado e de Washington.
No primeiro, a opção por uma tributação baixa deriva da prioridade de asfixiar o comércio ilegal. No segundo, a opção oposta responde ao objetivo central de desestimular o consumo.
O debate informado sobre a cannabis ultrapassou os argumentos clássicos do proibicionismo, que enfatizam os efeitos da droga sobre a saúde e a falsa suposição de que ela induz ao consumo de substâncias ilegais mais danosas.
A maconha faz mal, mas drogas legais como o tabaco e o álcool têm efeitos tão prejudiciais quanto ela, ainda que diferentes.
As correntes anti-proibicionistas refletem a experiência da "guerra às drogas". Elas aceitam o fardo, meramente hipotético, de que a legalização provoque algum aumento do consumo, em troca da supressão dos custos sociais da repressão ao tráfico ilegal.
Na América Latina, onde se estabeleceram poderosas organizações do narcotráfico, o argumento para o encerramento da era proibicionista é ainda mais convincente.
Da criminalização decorre o encarceramento ritual de pequenos traficantes, o desvio de esforços policiais para o combate a uma prática disseminada, os incentivos financeiros à colaboração de policiais com o crime e, sobretudo, a reserva de um mercado bilionário aos cartéis do tráfico.
A legalização da maconha não é uma varinha mágica. O tráfico criminoso opera com diversas drogas ilegais, especialmente a cocaína e, no caso do Brasil e outros países, o crack.
Contudo, o comércio de cannabis representa cerca de metade de um mercado de drogas que movimenta em torno de US$ 300 bilhões ao ano.
Uma radical redução das rendas seguras da venda de maconha assestaria um golpe significativo nos cartéis do tráfico.
No México e na Colômbia, é esse cálculo pragmático que sustenta o projeto de legalização.
O proibicionismo nos EUA provavelmente cairá devido à sua progressiva erosão no âmbito estadual, mas a estabilização geopolítica do México e da fronteira sul deveria funcionar como argumento para a legalização da maconha na esfera federal.
Uma ilha nas Américas. No Brasil, o tema da maconha estiolou-se num debate patético sobre a ideia de descriminalização exclusiva do consumo.
A proposta imoral, marcada por um corte de classe evidente, é tirar a polícia do encalço dos consumidores do "asfalto", enquanto seus fornecedores do "morro" continuam sujeitos à perseguição.
Trata-se de conservar as prerrogativas e o poder de policiais-bandidos e de narcotraficantes na "guerra às drogas", oferecendo um especial salvo-conduto aos jovens de classe média interessados apenas em algumas horas de recreação.
Cenografia: na nossa ilha mental, tudo gira em torno do imperativo de limpar a sujeira que respinga sobre as fachadas.
A guerra à maconha aproxima-se de seu outono. Por aqui, enquanto os baseados passam de mão em mão, persistimos em financiar as armas do crime. Até quando?
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*Doutor em geografia humana, é especialista em política internacional. Escreveu, entre outros livros, "Gota de Sangue - História do Pensamento Racial" e "O Leviatã Desafiado".