Era só o que faltava 22/02/2016
- Marcia Dessen - Folha de S.Paulo
Cena 1: O governo precisa desesperadamente aquecer a economia. Injetar dinheiro novo é uma maneira de movimentar o mercado. Vamos incentivar o consumidor a comprar, comprar e comprar, utilizando dinheiro próprio ou emprestado, não importa muito.
Cena 2: Os bancos não gostaram nada de ver o risco de calote aumentar nas operações de crédito para trabalhadores da iniciativa privada. Conceder empréstimo consignado para funcionários públicos que têm estabilidade é uma coisa; para alguém que pode perder o emprego, outra bem diferente. Problema dos bancos, faz parte do risco do negócio bancário. Ou não?
Cena 3: O FGTS tem um bocado de dinheiro. Bem que poderíamos aprovar uma medida provisória permitindo que o trabalhador da iniciativa privada, esse que representa risco para os bancos, utilize parte do saldo do FGTS e todo o valor da multa caso seja demitido, como garantia de empréstimo consignado.
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Bom para os bancos? Com certeza, fácil emprestar dinheiro com uma garantia dessa. Bom para o governo e economia? Talvez, depende de como o trabalhador vai usar o dinheiro. Bom para o trabalhador? Não sei, tenho sérias dúvidas.
Cena 4: Os trabalhadores serão incentivados a tomar mais empréstimo e comprometer ainda mais sua renda. E, pior, isso será feito com o comprometimento de parte do FGTS, uma reserva financeira destinada a proteger o trabalhador e não os bancos ou a economia.
Eu não sei se a medida será aprovada, em que contexto, nem como essa história vai terminar, mas prevejo que a corda vá arrebentar do lado mais fraco.
No curto prazo, a injeção de dinheiro pode animar a economia e o governo dizer que adotou medidas vencedoras. O lucro dos bancos aumenta pela concessão de crédito com baixo risco. O trabalhador empregado estará mais endividado. O trabalhador desempregado, em palpos de aranha.
O crescimento econômico não se sustenta se o nível de consumo não é mantido. Um círculo vicioso, e não virtuoso, pode estar sendo criado.
Aos governantes peço que se preocupem, e muito, com os já combalidos cidadãos brasileiros.
Aos bancos incentivo que concedam empréstimo a quem merece e comprova capacidade de pagamento, independentemente de garantias generosas.
Ao FGTS convido revisitar a vocação pela qual foi criado e limitar o uso dos recursos financeiros em prol do trabalhador. Estimular a economia e proteger os bancos não é seu papel.
Ao trabalhador recomendo pensar muito antes de contrair mais uma dívida, avaliar o impacto sobre sua renda e sobre a reserva financeira destinada ao futuro, quando não tiver mais renda para consumir e for capaz apenas de prover o seu sustento e de sua família.
Analisada isoladamente, sem outras variáveis, essa história tem pouca chance de acabar bem.
Para aumentar as chances de um final feliz, o governo poderia amarrar melhor as pontas, aprovando a medida com duplo objetivo, o de estimular a economia, mas também educar financeiramente e proteger o cidadão contra o consumo exagerado. Pensando alto, aqui com os meus botões:
- Limitar o comprometimento da renda mensal para pagar empréstimos de qualquer natureza, em torno de 20% da renda do trabalhador. As autoridades estão indo exatamente no sentido contrário, aumentando o limite e o prazo das operações de crédito;
- Liberar o recurso somente para operações de crédito que ajudam a construir patrimônio, como a compra, a construção ou a reforma de imóveis;
- Não conceder esse crédito para quem já está inadimplente, ou aumentou o montante de dívidas no último ano, ou voltou a ficar inadimplente depois de renegociar dívidas;
- Condicionar a liberação desse crédito à quitação de operações mais caras, como os limites rotativos do cartão de crédito e cheque especial, se houver.
Quem sou eu para ensinar o padre nosso ao vigário, interferir ou dar palpites nas políticas públicas... Sou apenas uma cidadã comum, que conhece um pouco o drama dos brasileiros despreparados para lidar com suas finanças. E não me perdoaria se deixasse de manifestar publicamente minha preocupação.