Breve história de uma queda 12/05/2016
- Demétrio Magnoli - O GLOBO
Uma fracassada operação de obstrução da Justiça, gesto final atestado de desespero, precipitou uma queda já quase inevitável.
Dilma Rousseff desistiu de descer a rampa do Planalto. É pena: se o fizesse, teria a chance de olhar quatro vezes para trás — e entender o que deu errado.
A primeira mirada, em direção à fachada envidraçada, rememoraria o triunfo eleitoral de Lula em 2002, que já parece tão distante.
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O lulopetismo alcançou o poder prometendo ao povo que, dali em diante, tudo seria leite e mel, mas ofertando às elites o sacrifício de seus dogmas mais sagrados: na Carta ao Povo Brasileiro, o metalúrgico converteu-se em estadista, ajoelhando-se diante das tábuas da ortodoxia econômica.
Durante o primeiro mandato, Lula cumpriu o roteiro — e ganhou um beijo de Fortuna, a deusa da sorte. Velas enfunadas pela ascensão chinesa, singrando o mar do superciclo de commodities, o PIB expandiu-se 5,7% em 2004, 3,5% em 2005 e 4,5% no ano eleitoral de 2006.
O crescimento do emprego, dos salários e da renda dos mais pobres (esta dopada pelo Bolsa Família), ergueu o presidente ao estatuto de mito.
“Nunca antes na História” — nascia o refrão de um verde-amarelismo satisfeito, balofo e autocomplacente. A imagem daquela idade de ouro ainda deve estar refletida lá, na superfície de vidro do Palácio.
A segunda mirada iria para as colunas sinuosas traçadas por Niemeyer, que deixam entrever o monstro da incerteza.
Na hora da glória, emergiam as sementes do fracasso.
Uma chama-se “mensalão”; a outra, pré-sal.
O “mensalão” brotou no outono de 2005, expondo as entranhas de um projeto criminoso de perenização da hegemonia e iluminando uma encruzilhada.
Diante dela, o lulopetismo rejeitou a estrada da “refundação”, preferindo trilhar a da reiteração, que conduziria ao abismo do “petrolão”.
O Pré-Sal ingressou no palco político em 2006, como “a segunda independência do Brasil”, “uma dádiva de Deus” e um “bilhete premiado”, nas expressões de um Lula hipnotizado por sonhos desmedidos.
Dali em diante, a política econômica seria contaminada pela ideologia.
Numa terceira mirada, ela olharia o parlatório, um lugar adequado para proclamações vazias.
Guido Mantega sucedeu Palocci na Fazenda — e a Carta ao Povo Brasileiro foi silenciosamente incinerada.
O “espetáculo do crescimento” interrompeu-se no final de 2008, sob o peso da crise global.
Pressionando o acelerador anticíclico do crédito, do subsídio e da dívida, o governo propiciou uma rápida recuperação.
Então, face ao ano eleitoral, dobrou a aposta, fabricando um crescimento do PIB de 7,8% em 2010 — e conduzindo uma fraude até a poltrona presidencial.
Lula é um pragmático amoral; Dilma, uma doutrinária obtusa.
O giro tático lulista converteu-se em estandarte da economia política dilmista.
A “nova matriz”, uma corrosiva mistura de populismo, ignorância e irresponsabilidade, destruiria o equilíbrio fiscal do país, devastaria as finanças da Petrobras e implodiria as contas do setor elétrico.
Tudo isso sem produzir um novo ciclo de crescimento: depois dos 4% inerciais de 2011, o PIB ainda saltou 2% e 3,5%, até encostar-se nos 0,2% de 2014, que sinalizavam o túnel escuro da depressão.
O lulopetismo esgotava-se junto com os soluços derradeiros da “globalização chinesa”.
Uma quarta e melancólica mirada seria dirigida ao fim da rampa, onde pretendiam se aglomerar militantes do PT, da CUT, do MST, do MTST e da UNE.
A mentira grossa da campanha de 2014, “estelionato eleitoral”, na qualificação adotada até por Lula, é culpa de Dilma — e valeu-lhe um desprezo oceânico que removeu o chão no qual se erguia o governo.
Já as revelações da Lava-Jato, uma narrativa judicial que remonta a 2005, derivam primariamente de Lula.
O impeachment é o produto dessa soma: Dilma + Lula.
Epílogo poético, Dilma e Lula se reencontraram numa fracassada operação bufa de obstrução da Justiça.
O gesto final, atestado de desespero travestido de prova de lealdade, precipitou uma queda já quase inevitável.
Restam os punhos cerrados, os gritos de guerra, as palavras de ordem.