A doença do amor 17/05/2016
- LUIZ FELIPE PONDÉ - FOLHA DE S.PAULO
Existe de fato amor romântico? Esta é uma pergunta que ouço quando, em sala de aula, estamos a discutir questões como literatura romântica dos séculos 18 e 19. Quando o público é composto de pessoas mais maduras, a tendência é um certo ceticismo, muitas vezes elegante, apesar de trazer nele a marca eterna do desencanto.
Quando o público é mais jovem há uma tendência maior de crença no amor romântico. Alguns diriam que essa crença é típica da idade jovem e inexperiente, assim como crianças creem em Papai Noel.
Mas, em matéria de amor romântico, melhor ainda do que ir em busca da literatura dos séculos 18 e 19 é ir à fonte primária: a literatura europeia medieval, verdadeira fonte do amor romântico. A literatura conhecida como amor cortês.
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Especialistas no assunto, como o suíço Denis de Rougemont, suspeitavam que a literatura medieval criou uma verdadeira expectativa neurótica no Ocidente sobre o que seria o amor romântico em nossas vidas concretas, fazendo com que sonhássemos com algo que, na verdade, nunca existiu como experiência universal.
Dos castelos da Provence francesa do século 12 ao cinema de Hollywood, teríamos perdido o verdadeiro sentido do amor medieval, que seria uma doença da qual devemos fugir como o diabo da cruz.
Para além dos céticos e crentes, a literatura medieval de amor cortês é marcante pela sua descrição do que seria esse "pathos" amoroso. Uma doença, uma verdadeira desgraça para quem fosse atingindo em seu coração por tamanha tristeza.
André Capelão, autor da época ("Tratado do Amor Cortês", ed. Martins Fontes), sintetiza esse amor como sendo uma "doença do pensamento".
Doença essa que podemos descrever como uma forma de obsessão em saber o que ela está pensando, o que ela está fazendo nessa exata hora em que penso nela, com o que ela sonha à noite, como é seu corpo por baixo da roupa que a veste, o desejo incontrolável de ouvir sua voz, de sentir seu perfume.
Mas a doença avança: sentir o gosto da sua boca, beijá-la por horas a fio.
Mas, quando em público, jamais deixe ninguém saber que se amam. Capelão chega a supor que desmaios femininos poderiam ser indicativos de que a infeliz estaria em presença de seu desgraçado objeto de amor inconfessável.
A inveja dos outros pelos amantes, apesar de condenados a tristeza pela interdição sempre presente nas narrativas (casados com outras pessoas, detentores de responsabilidades públicas e privadas), se dá pelo fato que se trata de uma doença encantadora quando correspondida.
Nada é mais forte do que o desejo de estar com alguém a quem você se sente ligado, mesmo que a milhares de quilômetros de distância, sem poder trocar um único olhar ou toque com ela.
O erro dos modernos românticos teria sido a ilusão de que esse medievais imaginariam o amor romântico numa escala universal e capaz de conviver com um apartamento de dois quartos, pago em cem anos.
Não, o amor cortês seria algo que deveríamos temer justamente por seu caráter intempestivo e avassalador. Sempre fora do casamento, teria contra ele a condenação da norma social ou religiosa que, aos poucos, levaria as suas vítimas à destruição, psicológica ou física.
Para os medievais, um homem arrebatado por esse amor tomaria decisões que destruiriam seu patrimônio. A mulher perderia sua reputação.
Ambos viriam, necessariamente, a morrer por conta desse amor, fosse ele em batalha, por obrigação de guerreiro, fosse fugindo do horror de trair seu melhor amigo com sua até então fiel esposa.
Ela, morreria eventualmente de tristeza, vergonha e solidão num convento, buscando a paz de espírito há muito perdida. A distância física, social ou moral, proibindo a realização plena desse desejo incessante como tortura cotidiana.
O poeta mexicano Octavio Paz, que dedicou alguns textos ao tema, entendia que a literatura medieval descrevia o embate entre virtude e desejo, sendo a desgraça dos apaixonados a maldição de ter que pôr medida nesse desejo (nesse amor fora do lugar), em meio à insuportável culpa de estar doente de amor.