Luz no fim do túnel 06/06/2016
- Fernando Henrique Cardoso
Passados os dias de ansiedade do processo de impeachment, com forte probabilidade de o Senado reafirmar a decisão da Câmara, o país perceberá que seus problemas continuam à espera de solução. São muitos, desde os econômicos (para os quais o novo governo, forçosamente, voltará o olhar), passando pelos morais (a Lava-Jato é o melhor sinal de que podem ser encaminhados), até os sociais, que são os que mais atazanam o povo, à frente o desemprego e a carestia, frutos da má condução econômica das últimas fases do petismo no poder. Esses problemas, infelizmente, não poderão ser resolvidos da noite para o dia. Como tampouco poderão ser os da Saúde, os da Educação, da Segurança ou os dos Transportes.
O povo sente que é assim. Espera sinais de mudança, e isso o governo Temer pode e deve dar.
Há outros temas para os quais os primeiros passos podem ser dados. Refiro-me aos entraves políticos em sentido profundo: não foram só um governo e o partido que o sustentava que desmoronaram. Há a implosão de todo um sistema político-eleitoral que aparta o Congresso, os partidos, e mesmo o Executivo do sentimento popular. A legislação partidária e eleitoral criada a partir da Constituição de 1988 não corresponde mais aos anseios do povo, nem cria as condições de governabilidade que a sociedade requer. Espera-se que o novo governo dê os passos iniciais da reforma política. Estruturas políticas (como as econômicas e as sociais) não mudam de repente, nem o fazem em sua totalidade, salvo em momentos historicamente revolucionários, o que claramente não é o nosso caso. Sendo assim, no que consiste a falada reforma política?
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A resposta é valorativa: para mim é fundamental aproximar os eleitores dos eleitos e construir pontes para alguma forma de governo que, não sendo ainda parlamentarista (nossa experiência partidária caótica afasta momentaneamente o eleitorado de um governo dos partidos), encaminhe-se para um semipresidencialismo. Mesmo isso requer a regeneração dos partidos. Como? O Congresso aprovou, e o STF anulou, em 2006, um dos pré-requisitos: uma regra que faça a presença dos partidos no Congresso depender de certa porcentagem de votos no país todo e em diversos estados, a cláusula de barreira. Ou bem o STF reinterpreta sua decisão, ou será preciso aprovar uma emenda à Constituição.
Em 2015, o Senado introduziu, mas a Câmara derrubou, a proibição de coligações proporcionais nas eleições legislativas. Essa medida complementaria a cláusula de barreira evitando a eleição de representantes nas asas do voto dado a deputados de outros partidos. Alguns dos partidos que se formam no Congresso são meros agregados de interesses específicos visando à obtenção dos recursos do Fundo Partidário e de tempo nas TVs para barganhar nas campanhas eleitorais. Pior, são quase gazuas para o acesso a recursos públicos, na infinita negociação com o Executivo. Em um Congresso fragmentado, com poucos deputados, pode-se formar um lobby com o nome de partido para obter um posto no Executivo que permita vantagens clientelísticas, corporativas, quando não pecuniárias.
Há outras questões para dar os passos iniciais de uma verdadeira reforma: é preciso estabelecer o voto distrital (prefiro o misto, a discutir). Em colégios eleitorais com milhões de votantes e centenas ou milhares de candidatos, os verdadeiros eleitores não são os cidadãos, mas as organizações intermediárias que financiam campanhas e/ou coletam votos para os candidatos: uma prefeitura, uma igreja, um sindicato, um clube de futebol, uma empresa. É a essas organizações que o representante se sente ligado e a elas presta serviços. Baseada em associações desse tipo, somada ao acesso a fundos públicos e privados, a “máquina eleitoral” está suficientemente azeitada para produzir o resultado político pretendido pelos que a operam. O cidadão comum está e continuará distante do eleito, cujo nome nem guardará, e seus interesses e sentimentos serão olimpicamente desconhecidos pelo parlamentar. É assim que se faz grande parte de nossa “representação” política.
É difícil mudar essas regras, mais fácil começar a instaurá-las nas eleições municipais. Nestas, fica evidente que o voto distrital aproxima o eleitor do representante. Havendo a necessária obrigatoriedade de cada partido lançar apenas um candidato por distrito, torna-se também mais nítida a mensagem dos partidos. A campanha será mais barata se as novas regras vierem junto com a proibição de “marquetagem” nas TVs, reservando-se o tempo gratuito para debates entre os candidatos e para a apresentação de seus projetos. Reduz-se assim a busca incessante de dinheiro (e os desvios de dinheiro público com esse disfarce), e pode-se ter uma norma mais realista de financiamento: cada conglomerado empresarial poderia contribuir com x milhões de reais, dando-os apenas a um dos contendores e entregando-os ao Tribunal Superior Eleitoral, a quem os partidos enviariam a cobrança dos gastos de campanha (além das contribuições, limitadas, de pessoas físicas).
Falta falar sobre o principal: um partido não pode ser apenas uma organização, nem um lobby. Precisa defender valores, ter uma mensagem que mostre sua visão do país e da sociedade. Até hoje, como expressão de algo parecido a isso, só o PSDB e o PT, e agora o PMDB, propuseram-se a “liderar” o país. Há outros partidos, menores, que se juntaram aos três referidos, como o DEM, o PCdoB, o PPS, os socialistas e outros poucos mais. Esses partidos, a despeito de seus choques atuais, precisam dialogar sobre a reforma. E tomara isolem os que se congregam no chamado “centrão”, expressão que caracteriza os agrupamentos de pessoas e interesses clientelísticos, “fisiológicos” e corporativistas, que, sem terem um projeto político nacional, mantêm a sociedade amarrada ao reacionarismo político e cultural. Matéria que fica para outro artigo.