Sou infeliz, mas tenho namorado 09/06/2016
- Mariliz Pereira Jorge*
Resolvi levantar quando o corpo já estava doído do colchão e eu não encontrava mais nenhuma posição em que pudesse ocupar cada pedacinho daquilo que agora parecia um latifúndio. Meu latifúndio. Foram quase dois anos dividindo espaço, contas, despertador, planos, doenças sexualmente transmissíveis, um arremedo de amor (era só tesão) e uma tonelada de frustrações diárias.
Eu estava sozinha. Estava livre. Estava tranquila depois de muito tempo me convencendo que era melhor ser infeliz do que não ter alguém para chamar de namorado, alguém para desfilar por aí como uma bolsa de grife, alguém que servia como atestado de pessoa-feliz-para-sempre. Tudo mentira, tudo ilusão, tudo a maior roubada.
A cama é o pau de arara do amor. Quando a gente apaga as luzes e deita a cabeça no travesseiro, todas as dúvidas, tristezas e arrependimentos vêm uma por uma como chibatadas. Vai ficar com esse amorzinho pão com ovo? Ahh, nem é tão ruim assim. A gente vira de ladinho, sorri para a caixinha de tarja preta e apaga antes de ter um lampejo de lucidez.
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Dormimos em cima das incertezas e no dia seguinte, ficamos felizes com um beijinho na testa, um tapinha na bunda e um "tchau, amor" vagabundo. Quase abanamos o rabo de felicidade. Que bobagem essa coisa de ter alguém e ainda querer felicidade no pacote. Bobinha.
Sou infeliz, mas tenho namorado, me resignava. E era um tanto louca que pensava em casar com o fulano. Ele me critica o tempo todo, me compara com a ex, abala minha autoestima. Nem muita admiração eu sinto. Ahh, ninguém precisa ser tão exigente, certo? Foi apego aos orgasmos semanais. Só pode.
Me apequenei tanto naquela relação, que nas primeiras noites sozinha me encolhia no cantinho com medo de na madrugada descobrir que já não me pertencia de novo. Tinha pavor de ser engolida por aquilo que eu chamava de amor, mas era só medo de ficar sozinha. E esse sentimento nos faz acreditar que qualquer pessoa pode transformar nosso mundo num lugar mais quentinho, macio e confortável. A gente acredita que para ser feliz tem que ter alguém que nos ajude a ser infeliz todos os dias.
Sozinho não é bom. Sozinho é só metade. Sozinho é incompleto. Sozinho é inacabado. Sozinho é fracasso. Sozinho não pode. Até que você vive tantas relações miseráveis e descobre que os momentos mais felizes de sua vida foram aqueles em que não tinha ninguém para infernizar suas noites de sono.
E você passa a ser insuportavelmente feliz assim. Que felicidade é dormir em diagonal na cama, pedir pizza de um sabor, deixar o secador dentro da pia, aceitar convites para sair às 23h. Foi apenas quando me senti completa que cheguei aquele estágio em que pavor mesmo eu tinha era de ser infeliz e não de ficar sozinha. Só faz sentido ter alguém quando a gente percebe que não precisa de ninguém. Mas leva tempo para entender e assimilar essa maneira de viver.
E até o dia dos namorados deixou de ser aquela data opressora quando você vai comprar ração para cachorro e a vendedora te estende um cupom para concorrer a um jantar com fondue. Quem precisa de um namorado para isso?
Mas em todas as vezes que passei a data sozinha comemorei por não estar com um tipo que preenchesse características como mala, cafa, sacana, psicopata, egoísta, louco. Num ano, comprei uma joia. No outro, passei o dia no spa. Num terceiro, viajei com amigos. Não sabia o que a vida me reservava, mas tinha uma certeza: só dividiria o meu latifúndio de novo com alguém que me fizesse ainda mais feliz do que eu era quando era muito feliz comigo mesma.
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*É jornalista e roteirista. Apresenta o programa "Sem Mimimi com Mariliz", no YouTube.