Pintassilgo-de-pijama 14/06/2016
- Blog de Augusto Nunes - Veja.com
Celso Amorim fugiu da tumba em que repousam os coadjuvantes da Era da Safadeza para chorar, pela segunda vez em 20 dias, a morte da diplomacia do cinismo.
A primeira ocorreu em 22 de maio, quando o chanceler de Lula ressurgiu na Folha em forma de artigo.
“Guinada à direita no Itamaraty”, gritava o título. O texto lastimava a queda iminente da África e da América Latina no ranking dos parceiros comerciais e escancarava a cólera do autor com os sinais de que o Ministério das Relações Exteriores recuperou o juízo.
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“Como se o Brasil fosse diferente e melhor do que nossos irmãos”, lacrimejou.
No sábado, Amorim materializou-se entre os celebrantes de outra missa negra do PT para reprisar a ladainha.
“As elites não terão mais nada a temer”, recitou, repetindo o último parágrafo do artigo no jornal.
“Nenhuma atitude desassombrada voltará a ser tomada. O Brasil voltará ao cantinho pequeno de onde nunca deveria ter saído”.
Ao reivindicar a paternidade de “atitudes desassombradas”, o chanceler que ignora os limites da vassalagem condecorou-se por demonstrações de pusilanimidade nas guerras sujas em que o Itamaraty se meteu. Haja sem-vergonhice.
Já lembrei aqui o dia em que o encontrei num aeroporto em Paris. Vale a pena resumir a história.
Corpo miúdo, pernas mirradas, braços muito magros estendidos como asas sem serventia, o passageiro que entrou na primeira classe do avião parecia um passarinho expostos aos rigores do inverno.
Mas era gente, avisaram o blazer preto bem cortado, a camisa social azul-celeste, a calça bege com barra italiana e os sapatos pretos de cromo alemão.
Mas não gente como a gente, dei-me conta ao reconhecer o homenzinho que acabara de subir a bordo. Era o ministro das Relações Exteriores.
Na noite de 4 de setembro de 2005, dentro do avião estacionado no aeroporto em Paris, eu tinha lido num jornal que o chanceler brasileiro estava em Bruxelas, não me lembro mais para quê.
Deve ter chegado em cima da hora, imaginei pelas passadas rápidas e pela respiração ofegante do assessor que o escoltava.
Amorim foi direto para o banheiro carregando uma maleta. Saiu cinco minutos mais tarde enfiado num coruscante pijama cinza-chumbo, calçando chinelas pretas de vovô, com o tapa-olho pendurado no pescoço e protetores de orelha na mão.
A comissária de bordo aproximou-se do passageiro acomodado na fileira da frente e murmurou as perguntas de praxe.
Revistas? Jornais brasileiros do dia?
Não, informou Amorim balançando horizontalmente a cabeça.
Já examinara o cardápio do jantar?
Sim, informou Amorim balançando perpendicularmente a cabeça.
Preferia vinho ou champagne?
“Quero um copo de leite”, enfim recuperou a voz. “E mais um cobertor”.
Nenhum país merece, pensei na poltrona logo atrás. Amorim lembrava um pintassilgo morrendo de frio.
Eu acabara de descobrir o único pintassilgo-de-pijama do mundo.
E então tive de resistir bravamente à tentação que sempre assaltava Nelson Rodrigues quando cruzava nas ruas do Rio com o cronista Carlinhos Oliveira, pequeno e franzino como um passarinho: quase perguntei a Celso Amorim se queria um pouco de alpiste.
Passados 10 anos, eu faria mais que ceder a essa tentação caso topasse com Amorim.
Também lhe sugeriria que presenteasse com uma arroba de alpiste o antigo parceiro Hugo Chávez, que reencarnou disfarçado de passarinho para dar conselhos a Nicolás Maduro, e ordenaria que regressasse imediatamente à tumba em que descansa.
Não é um lugar aprazível. Mas é mais aconchegante do que a gaiola em Curitiba que hospeda velhos companheiros de combate às leis e à honradez.