Paisagem depois da batalha 28/06/2016
- Fernando Gabeira
Pela minha agenda, deveria estar na Serra da Mantiqueira, visitando agricultores orgânicos cuja lavoura está sendo atacada por javalis.
Mas a notícia de que o Rio decretou calamidade pública, os problemas de segurança que se agravam, tudo isso contribui para que fique por aqui e, por enquanto, deixe os javalis em paz.
Documentar a paisagem depois da batalha é remexer as cinzas de um sonho em que a roubalheira e a megalomania dominaram o cenário.
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Esta semana ficamos sabendo que a Odebrecht, além de seu departamento de propina, tinha um servidor na Suíça e um banco em Antígua, um sofisticado e talvez inédito esquema para uma só empresa.
Os rankings internacionais de corrupção terão de abrir uma nova modalidade para abarcar essa capacidade de construção de um sistema fechado, um mundo virtual onde empreiteiros movem fortunas de verdade.
A Olimpíada que se aproxima é uma espécie de herança daquele período delirante. Um só país decidiu sediar Copa do Mundo e Olimpíada.
A ideia que animava a atração dos eventos era revelar o poder de organização do Brasil, maravilhar o mundo com nosso crescimento.
O primeiro choque se deu em 2013 com as grandes manifestações de rua.
A Olimpíada chega agora com o Brasil em crise profunda e o Estado do Rio quebrado.
O decreto de calamidade pública tem um aspecto mítico porque nos remete a catástrofes naturais, tempestades, terremotos.
Remexendo nas cinzas do delírio vamos encontrar a insistência em ampliar a máquina do estado, em conceder isenções fiscais generosas, sem um estudo de custo-benefício dessas medidas.
Mas era um tempo alucinado em que os homens do governo dançavam com um lenço na cabeça num caro restaurante de Paris. E as mulheres exibiam seus sapatos Christian Louboutin.
Começam a surgir agora, em novas delações, indícios do processo de corrupção que envolveu o Comperj e o Maracanã.
A visão daqueles tempos fica mais completa ainda. Calamidade nos remete à ideia de algo inesperado e repentino. Quase sem intervenção humana.
O que acontece agora é resultado de um longo processo de erros e desvios, de ambições milionárias que arruinaram o Estado.
O esquema de segurança da Olimpíada para o qual foram destinados R$ 2,9 bilhões deve representar um alívio para a própria polícia, num momento em que traficantes invadem hospitais ou desfilam armados nas proximidades do aeroporto.
Mas a Olimpíada vai passar, e o Rio estará de novo confrontado com sua crise.
É um corpo ferido por muitas flechas: crise econômica, petróleo, corrupção, violência. E o governo não é nada estimulante.
Pressionado por repórteres a falar sobre algo além de verbas para a segurança, Francisco Dornelles limitou-se a dizer para o motorista: “Vamos embora, Ademário”.
O Sr Ademário Gonçalves dos Santos deve ser um excelente motorista profissional. Mas não pode saber sozinho qual o nosso destino.
Embora para onde, Ademário?
Que buracos, solavancos, sinistras curvas você prepara para nós?
O Rio terá de se reinventar. E não será nada fácil. As cinzas revelam longos períodos de populismo. Haverá choques, frustrações.
Certas medidas, no entanto, podem ser bem recebidas, a julgar por alguns cartazes que li: rever as isenções fiscais.
Está mais do que na hora de discutir tudo abertamente.
Não existem fórmulas acabadas para encarar o problema do Rio. Era preciso que as pessoas tivessem uma visão bem clara do que aconteceu e o estrago que o grupo dominante provocou.
Esse conhecimento pode ajudar na reconstrução. Muitos delírios explodiram por aqui.
O último foi o PT: uma supertele nacional, a Oi, que pediu recuperação judicial.
Se toda esse derrocada que nos custou dinheiro e trabalho representar uma vacina contra o populismo, pelo menos alguma coisa será ganha.
Eleições com pouco dinheiro e um novo comportamento do eleitor podem também ser um avanço. Mas são possibilidades futuras.
Aqui e agora, teremos de esperar o Sr. Ademário num posto de gasolina, numa loja de conveniência, e perguntar de novo o que o governo vai fazer.
O rombo nas contas do estado é de R$ 20 bilhões.
Não basta declarar calamidade. É preciso um mapa para transitar rumo a uma situação mais calma.
Dificilmente o governo fará a coisa certa sem transparência e algum tipo de adesão racional da sociedade.
Mesmo viajando muito pelo país, tive a oportunidade de documentar a decadência das cidades ligados ao petróleo, como Campos e Macaé, a crise financeira e sua consequência nos serviços essenciais e, esta semana, mais detidamente, os problemas de segurança.
Não me lembro de uma crise tão profunda e tão inquietante pelas suas possíveis consequências sociais.
Uma consciência mais ampla desse desastre pode evitar que as cinzas do delírio populista tragam consigo os ovos da serpente.