Perder-se 18/07/2016
- LUIZ FELIPE PONDÉ - FOLHA DE S.PAULO
Você acredita em destino? Sei, parece uma pergunta estranha. Principalmente num mundo como o nosso, cozido na crença e no projeto de domínio de tudo pelo indivíduo que escolhe as coisas com a força de quem traz o Visa entre os dedos.
Outro dia, conversando com amigas, perguntei quem acreditava em destino. Apenas aquela que já viveu mais, respondeu "sim". As demais, mais jovens, responderam "não". Pareceu-me que ali pesava a maior sabedoria daquela que viveu mais (e trata-se de uma mulher muito bem-sucedida, para que nenhum desavisado pense que era uma "coitada").
Sim, sou um falso contemporâneo: duvido da capacidade humana de controlar sua vida. Cada vez mais. Sendo eu um contemporâneo, minha suspeita de que exista destino deve ser alguma forma de patologia cognitiva. Prefiro minha patologia ao invés do delírio dos meus contemporâneos.
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Nesse sentido, ponho sob suspeita a máxima do mundo burguês moderno: sou dono do meu destino, basta que eu calcule, seja competente e monte estratégias. Nos meus piores momentos, suspeito que essa crença seja mais um dos males da caixa de Pandora, que Zeus deu a ela para nos castigar contra nosso conhecimento do fogo (símbolo da técnica) e seus delírios de poder.
Lembremos que o pior dos males naquela caixa era a esperança. Ter esperança é um engano, porque não há esperanças, pensa o grego antigo. Entendo que a crença na liberdade individual contra o destino seja um pouco como a esperança de Pandora: mais um engano, entre tantos outros, que nos faz acreditar em nossa infinita capacidade de dominar as coisas.
De onde viria essa certeza de que somos livres e de que não existe um destino "traçado" sobre nossas cabeças?
Quando olhamos para o mundo antigo, é comum encontrarmos a crença nalguma forma de destino. Esse destino seria traçado por forças divinas. No mundo grego, o famoso oráculo de Delfos, dedicado ao deus Apolo, aquele conhecido por dizer "Conhece-te a ti mesmo", citado por Sócrates, tinha um "complemento", que era: "Saibas que tu és mortal".
Estava aí o destino: o homem é sempre menos do que um deus porque ele é mortal e, por isso mesmo, tem como destino a perda de si mesmo. Entendo que a perda de si mesmo vá além da ideia concreta da morte. A perda de si mesmo se dá de diversas formas. Enquanto escrevo para você, me perco, me traio.
O engano contemporâneo com relação a inexistência do destino estaria não apenas no fato que continuamos mortais, mas também no fato que continuamos a perder a nós mesmos das mais variadas formas: viver é perder-se (nas paixões, nos desejos, nos fracassos, nos sucessos, nas guerras), e se você tenta evitar isso, você se perde mais rápido ainda e de forma definitiva e miserável. É aí que se encontra minha suspeita, além da mortalidade da qual fala Delfos, de que exista algo como um destino invadindo nossas vidas. Mas, sendo a modernidade uma "teenager" encantada com seu sucesso, acabamos por interpretar os palhaços da liberdade.
Pensando a partir de um materialismo social, a ideia de destino parecia mais comum quando os homens e as mulheres tinham poucas opções na vida, fosse por conta de pouca técnica, pouca longevidade, pouca liberdade individual, pouco conhecimento, pouca democracia, poucos shopping centers. Este último principalmente: a fé na liberdade moderna é um misto de fé na técnica (o fogo de Prometeu) e no poder do Mastercard.
Por isso, a fé na liberdade individual me parece fruto do avanço da sociedade de mercado e suas ferramentas de sucesso, descritas acima. Se você quiser ver esta liberdade caminhando por ai, vá ao Iguatemi. A riqueza fez de nós descrentes no destino, porque pensamos poder "comprá-lo".
Não duvido dessa premissa: mais dinheiro, mais técnica, mais sensação de liberdade. Mas suspeito que esta crença seja parte da esperança de Pandora. No fundo da caixa de Pandora tinha mais um mal escondido: a crença na liberdade do consumidor como liberdade contra o destino. O destino moderno é enganar-se com o próprio poder de controlar das coisas.