O Brasil real e o da narrativa 05/09/2016
- FERNÃO LARA MESQUITA - ESTADÃO
Ricardo Lewandowski é o Eduardo Cunha do Judiciário. Não que seja venal ou tenha aquela atitude temerária do outro, mas, no escurinho, anda sempre “tinindo nos cascos” para manipular regimentos e votações colegiadas para “amaciar” penas para meliantes e transformar alhos em bugalhos.
Na semana passada deu um susto no Brasil quando emergiu dos mais recônditos bastidores da “narrativa do golpe” cheio de anotações e deu um tirombaço abaixo da linha d’água do “seu” próprio STF, guardião da Constituição, colocando-a – e a ele até segunda ordem – abaixo do regimento interno do Senado de Renan Calheiros e pondo a bandidagem política como um todo em festa.
Se os seus presididos aceitarem essa demissão virtual por “extinção de função” ou jogarem nas costas do Brasil o ônus do golpe que houve, como querem os autores da “narrativa” do golpe que não houve, terá sido o fim final da batalha épica para fazer a lei e a segurança jurídica imperarem um dia no Brasil.
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Esperemos que não o façam. Se alguém tem de ficar desmoralizado, porque não há como sair da encalacrada sem isso, que não sejam o STF, a Constituição e o Brasil. Quem pariu Mateus que o embale...
No mais, vamos perdidos, como sempre, no vácuo entre o Brasil real e o Brasil “da narrativa”, que não se restringe à do golpe ou não golpe.
O governo Temer, tangido pela opinião pública ou por iniciativa própria, tem voltado sempre para o canal certo, até porque não há alternativa para ele fora do canal certo.
O barulho todo que o PT fez, como não se cansam de repetir seus batedores de bumbo, era apenas para “construir a narrativa do golpe” a ser usada mais adiante, quando levar ao nível de saturação do costume a atribuição aos bombeiros do incêndio que ateou. Na verdade, precisa livrar-se do desastre ambulante Dilma Rousseff tanto quanto você e eu e, mais que dela, da herança desses 13 anos de tramoias para nos impor, pela tangência das instituições democráticas, esse “socialismo do século 21” que assola os países que retiraram seus embaixadores em solidariedade ao Chefe de Todos os Chefes caído. Mas não quer dizer que tenham desistido do poder em que tão gostosamente se têm lambuzado.
O impeachment é a única chance de sobrevivência do PT. Se tivesse de descascar sozinho o abacaxi que plantou, não sobraria nem o pouco que sobrou. O problema é que deixar ao PT o comando do naufrágio do navio cujo casco arrombou implicava o suicídio do Brasil, e já. De modo que, com ou sem vaidades e más intenções na carona, assumir a “trolha” era inevitável. Assim se inverteram os papéis: evitar o naufrágio passou a ser a única chance de sobrevivência da oposição. E não há como evitá-lo senão fazendo a coisa certa e, mais ainda, na dose certa.
O Brasil está arrebentado pelo inchaço além de qualquer limite suportável não só do numero de funcionários públicos, mas também do excesso de privilégios que lhes foram concedidos, especialmente à minoria dentro dessa minoria, os “comissionados” e chefetes de encruzilhadas estratégicas do “Sistema” que constituem o núcleo duro da militância do PT que nunca caiu, antes ou depois da ascensão ou da queda do partido. Segundo especialistas acima de qualquer suspeita como Ricardo Paes de Barros, formulador do programa Bolsa Família, esse grupo desfruta salários diretos e indiretos e vantagens tais que “distorcem a estatística de distribuição da renda nacional”. Trata-se, portanto, de uma minoria dentro da minoria que é o funcionalismo como um todo, menos de 5% da população que consome quase a metade do PIB (46% contado só o “por dentro”) e não devolve aos 95% dos quais surrupia esse balúrdio senão humilhações, escândalos e o cipoal legislativo, tributário e burocrático tramado com o propósito específico de impedi-los de trabalhar a menos que comprem por bom preço a isenção a esse inferno.
No campo da Previdência a distorção é maior ainda. Apenas 980 mil aposentados e pensionistas da União produzem um déficit anual de R$ 93 bi, mais que o gerado pelos 32,7 milhões de aposentados e pensionistas do setor privado somados. E há ainda os dos 25 Estados e 5.570 municípios...
Este, não obstante, continua sendo um “não problema” que os governantes e administradores públicos não podem sequer mencionar porque, sendo esse tema uma pauta rigorosamente banida de uma imprensa decidida a não enxergar aquilo que lhe bate na cara, essas contas e a sua tradução “cênica” de tão ricas possibilidades mobilizatórias são mantidas fora do horizonte consciente do brasileiro médio, o que tira dos políticos e administradores públicos bem-intencionados o “álibi” que se requer dentro dessa ditadura velada em que vivemos para jogar a favor dos 95%. Falar do tema por iniciativa própria dentro de qualquer instância política, partidária ou de governo é morte certa.
Prevalece, assim, “a narrativa”, que a imprensa e seus “especialistas” amestrados coonestam, que fala numa vaga “desorganização da economia” herdada de Dilma Rousseff, sem nunca mencionar uma causa localizada, precisa e escandalosamente definida como é de fato a única que existe e, consequentemente, só pode ser combatida por “medidas impopulares” ou “de redução de direitos” não de quem permanece flutuando acintosamente por cima da crise e exigindo mais sangue, mas de quem já está morrendo de anemia.
Se o seu jornal ou canal de TV está entre os que lhe servem toneladas de matérias para demonstrar, por exemplo, que o maior problema do país mais miscigenado e libertino do mundo são o racismo e a repressão sexual, e nem um grama de manchetes e cenas pungentes para cotejar as agruras da “via-crúcis” em que penam os 95% com as doçuras da abundância e da segurança inabalável em que permanecem escondidos os 5% que fabricam crises, mas não as vivem, ele é um dos que estão cometendo o crime de responsabilidade que mantém o País refém dessa máfia. Você deveria cobrá-lo com o rigor que um crime desses merece.