Entre a Bíblia e o Capital 08/10/2016
- RUY FABIANO - O GLOBO
Os dois Marcelos que disputam a prefeitura do Rio de Janeiro, Crivella (PRB) e Freixo (Psol), têm algo mais em comum, além do nome: ambos serviram ao PT. Freixo começou ali sua carreira política, como militante; Crivella foi ministro de Dilma Roussef.
Freixo, ao tempo do Mensalão, associou-se à criação do Psol (Partido Socialismo e Liberdade), concebido para permitir uma alternativa à esquerda, na eventualidade, confirmada com o Petrolão, de perda de credibilidade pública (e, por extensão, eleitoral) do PT.
Ambos se mostram oportunistas num grau elevado, o que explica o êxito que vêm obtendo na carreira. Crivella, em seu segundo mandato de senador, foi ministro da Pesca, mesmo confessando desconhecer como se coloca uma minhoca no anzol.
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Tem por trás de si uma estrutura considerável: a Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, seu tio, dono também da Rede Record de rádio e TV. Não é pouca coisa, pois lida com multidões, habituadas a obedecer fielmente a palavra de pastores e bispos, que não praticam o absenteísmo político-eleitoral.
A eles, Crivella deve seus mandatos de senador. Ideologicamente, é de um pragmatismo admirável, que o fez deixar o ministério para votar pelo impeachment de quem o fez ministro.
Candidatou-se duas vezes ao governo do estado (2006 e 2014) e três vezes à prefeitura (2004, 2008 e agora, 2016). É, como se vê, obstinado pelo Poder Executivo, que o faz sonhar com a Presidência da República, projeto acalentado pela igreja a que serve.
Já Freixo, depois de militar por 20 anos (1985 a 2005) no PT, foi para o Psol, a pretexto de restabelecer a pureza ideológica que o petismo, no exercício do poder, havia perdido.
Impurezas à parte, apoiou os governos petistas e opôs-se ao impeachment de Dilma. É uma das vozes mais atuantes no “Fora, Temer”. Sua Bíblia é o Capital, de Karl Marx, assim como o capital de Crivella é a Bíblia propriamente dita.
Freixo mudou de partido, mas não de agenda, centrada desde sempre num discurso de defesa dos direitos humanos (não o das vítimas, claro), da liberação das drogas (incluindo atenuação da repressão ao tráfico, poupando o que chama de pequeno traficante), da liberação plena do aborto e de todo o temário sexista do movimento gay.
Eleito deputado estadual em 2014, com a maior votação no país, tem como base eleitoral o meio artístico, intelectual e acadêmico. Sua força é a Zona Sul da cidade. A de seu oponente, a Zona Norte e os subúrbios, mais populosos.
Acusado de promover (e remunerar) as ações dos black blocs nas manifestações no Rio - inclusive aquela em que, em 2014, foi assassinado o cinegrafista da Rede Bandeirantes, Santiago Andrade -, Freixo negou qualquer vínculo com os agressores.
Mas as evidências o vinculam ao grupo, defendido por advogados que o atendem, um deles funcionário de seu gabinete parlamentar. Há registros filmados de seu pessoal distribuindo lanches e dinheiro aos manifestantes naquelas ocasiões.
Com tais perfis, não é de se estranhar o altíssimo nível de abstenção registrado nas eleições cariocas de primeiro turno, em que Crivella foi vencedor. Entre votos brancos, nulos e ausências, chegou-se quase à metade do eleitorado. No segundo turno, esse índice pode até aumentar, tal o grau de rejeição a ambos.
O eleitor brasileiro, no entanto, está habituado a votar sob o critério da redução de danos. Não escolhe o melhor, mas o menos prejudicial – e isso faz tempo. No caso presente, o que mobilizará o eleitor neste segundo turno é a agenda dos candidatos. São antípodas. O eleitor de Crivella rejeita a de Freixo e vice-versa.
Na agenda de fundo cristão e conservador de Crivella, não cabe nenhum dos quesitos da de Freixo. São visões comportamentais que não se misturam e que hoje estão no centro de profundas polêmicas, que, sem exagero, dividem a sociedade brasileira.
A agenda de Crivella tem maior penetração junto ao povão, que, conforme o atestam sucessivas pesquisas, tem perfil conservador e não assimila teses como liberação das drogas, direitos humanos dos bandidos e o discurso sexista encarnado por Freixo.
E é essa discussão – e não propriamente os dois candidatos, que se equivalem moralmente e já serviram ao mesmo governo, ainda que com propósitos diferenciados – que está em pauta.
A massa de eleitores identificada com o discurso do bispo-senador é maior (segundo o Datafolha, 62% a 38% dos votos válidos), mas a de Freixo é mais influente.
Embora se apresente como adversária das elites, a base eleitoral de Freixo não é outra coisa, senão elite: econômica, cultural e política. E basta isso para que se constate o grau de enfermidade psíquica por que passa a política brasileira.