Lula não vota, mas julga o voto dos outros 03/11/2016
- ROBERO DIAS - FOLHA DE S.PAULO
"O povo brasileiro ainda não está em condições de votar por falta de prática, por falta de educação e porque se vota em geral mais por amizade com os candidatos."
Dita por Pelé nos anos 70, a frase marcou época. Numa ditadura que engatinhava para as urnas, discutir a "qualidade" do voto não parecia a prosa mais inteligente.
A sentença também marcou o autor, ao sugerir que, sem chuteira, ele tinha pouco a somar, ideia eternizada por Romário: "O Pelé calado é um poeta".
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Longe dos gramados de Brasília, Lula falou à vontade na terça (1º), na Universidade Federal de São Carlos (SP), dois dias após a eleição que desidratou o PT.
Envolto por plateia reverenciosa e por uma lógica de "nós contra a elite" que sufoca a matemática, concluiu que as pessoas que discordam dele, bloco ora majoritário, "não aceitam que prefeituras progressistas governem este país".
Criticou sobretudo os moradores de SP, epicentro de sua derrota: "Aqui o problema é o conservadorismo".
Julgar o voto alheio deveria figurar em qualquer lista das coisas mais ridículas que existem. É um ato até tautológico.
O lado derrotado vai de pronto achar absurdo o voto do vencedor. Quem ganha sempre vai ter motivos para elogiar os eleitores — até mesmo incorrendo no cômico, como no caso de Rafael Greca, que atribuiu sua vitória "à inteligência do povo de Curitiba" e que agora lidará com 400 mil pessoas que, na sua ótica, não são tão espertos assim.
Muito diferente é criticar uma ideia ou um candidato. Nesse ponto os argumentos de Lula melhoram:
"Ao invés de negar a política, a gente tem que fazer política. Porque a desgraça de quem não gosta de política é ser governado por quem gosta. E quem gosta é sempre a elite."
Os EUA, onde o voto não é obrigatório, corroboram essa tese, como descreveu o professor Marcus André Melo, da Universidade Federal de Pernambuco: lá, o comparecimento às urnas dos 10% mais ricos dos americanos é quase o dobro do dos 10% mais pobres.
Só que reside nesse front outro tipo de problema no discurso do petista.
Lula é o brasileiro que mais votos recebeu na história. Foram 280 milhões em sete disputas eleitorais. Essa mesma pessoa achou que não deveria dar o seu voto na eleição de sua cidade, São Bernardo — e dois dias depois defendeu a importância de fazer política.
Em outros tempos, as contradições da prosa de Lula até soariam divertidas.
Nos atuais, ele se arrisca a parecer tão poeta quanto Pelé.