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O OUTRO LADO DA NOTÍCIA

Pós-verdade, pós-política, pós-imprensa
10/11/2016 - EUGÊNIO BUCCI*

“quis mudar tudo
mudei tudo
agorapóstudo
extudo
mudo” - Augusto de Campos



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Eles são muito ricos, chegam de fora, arrombam a porta da direita, destroçam os partidos que os acolhem, deblateram contra a política e os políticos, esnobam a imprensa e vencem.

O presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, é um deles. João Doria Junior, prefeito eleito da cidade de São Paulo, é outro. Os dois fizeram fama apresentando o programa de TV "O Aprendiz", donde podemos concluir: todo poder emana de O Aprendiz e em nome de seus telespectadores será exercido.

Quanto às consequências, seja na versão soft, empoada e periférica (Doria), ou na versão hard, abrutalhada e central (Trump), elas se escondem no subterrâneo do futuro.

O que vem por aí? E o que é que se foi por aí? O que ficou para trás?

Entre outras quinquilharias, parece que o que dançou de vez é aquilo a que se costumava chamar de verdade.

Deixemos de lado o acessório (Doria) e fixemo-nos no principal (Trump).

Um traço marcante no presidente Donald é que ele mentiu muito sobre fatos incontestáveis. Jurava que Obama não era americano, por exemplo.

Trump foi tão longe no esporte de mentir que, em setembro, a revista inglesa The Economist surgiu com uma capa sobre a “pós-verdade”.

Segundo os argumentos da publicação, o descompromisso de Trump com os fatos levou a política à era da “pós-verdade”.

O desprestígio da verdade na política vem sendo anotado há tempos. A própria Economist sabe disso e anota que os políticos nunca primaram pela honestidade intelectual, em tempo algum.

Dizer sempre a verdade nunca foi uma regra dos que administram a pólis.

Uma providencial recapitulação do tema já foi feita pelo professor Celso Lafer em "A mentira": um capítulo das relações entre a ética e a política, no livro Ética, organizado por Adauto Novaes (Companhia das Letras, 1992). Podemos ir direto às fontes.

No Livro III de "A República", lá se vão 2.400 anos, Platão, que detestava os mentirosos, abre uma exceção para o governante que, por vezes, sonega aos governados uma informação ou outra:

“Se compete a alguém mentir, é aos líderes da cidade, no interesse da própria cidade”.

Platão atribui à mentira do líder, desde que “no interesse da própria cidade”, um caráter piedoso, mais ou menos como a mentira dos médicos, que, em certas circunstâncias clínicas, funcionaria como remédio.

Mais tarde, no início do século 16, Maquiavel expandiu com largueza a licença da inverdade na política e cobriu de elogios a astúcia da raposa.

Para preservar seu poder e fortalecer o Estado mentir era apenas uma – entre tantas outras – das prerrogativas do príncipe.

Não que o príncipe pudesse aloprar e levar suas mentiras ao absurdo total, como faz Trump.

A pretensão de que a política deveria manter nexo com algum tipo de verdade persiste em Maquiavel e chegou até nossos dias.

Que tipo de verdade seria esse?

Na segunda metade do século 20 Hannah Arendt a identificou: a verdade dos fatos – ou, no dizer dos jornalistas, a verdade factual.

Em "Verdade e Política" a filósofa reflete sobre como o poder tende a distorcer os fatos – ela cita o caso da União Soviética, que fez desaparecer de seus registros históricos um dos maiores protagonistas da revolução bolchevique, Leon Trotsky – e constata que as tiranias combatem obstinadamente a verdade factual.

Ela lembra que na Alemanha nazista era mais perigoso falar de um campo de concentração (um fato) do que “emitir pontos de vista ‘heréticos’ sobre o antissemitismo, o racismo e o comunismo”.

Ou seja, as ditaduras podem até suportar discursos sobre teses abstratas, mas abatem a tiros as notícias factuais que as contrariem.

As democracias, ao contrário, toleram os fatos com mais facilidade.

Aqui chegamos a uma conjunção interessante.

A verdade factual, que é “a própria textura do domínio político”, no dizer de Hannah Arendt, é também a matéria-prima da imprensa livre.

Para que a verdade factual possa imperar, na política e na imprensa, é preciso que a liberdade esteja assegurada.

Uma e outra, a política e a imprensa, só prosperam em sociedades democráticas, ou tendentes à democracia, onde a verdade dos fatos é um valor.

Se a verdade factual cai em desprestígio ou em desuso, a imprensa perde relevância e a política simplesmente caduca.

À sombra do declínio da política surge uma forma deturpada de religião, um tipo de aglomeração de vontades em que as crenças contam mais do que a razão.

As “bolhas” geradas pelos algoritmos das redes sociais jogam um peso enorme nesse descarrilamento.

Com razão, as bolhas vêm sendo apontadas como ambientes de não diálogo que apenas celebram “pensamentos únicos”, mistificações e dogmas autoritários, à esquerda e à direita.

Os desdobramentos são óbvios.

A verificação da verdade factual – o ofício por excelência da imprensa – deixa de ser essencial para os cidadãos, que prescindem de fatos para formar sua opinião.

O brilho do extremismo ocupa o lugar da imprensa crítica.

Vistas por essa lente, não há muita diferença entre a polarização das eleições presidenciais dos Estados Unidos da América e a polarização das eleições municipais do Rio de Janeiro.

Nos dois lugares temos características de batalha entre seitas, mais que um debate de argumentos.

Enquanto a política se esvazia e caduca, a imprensa deixa de ser necessária, na exata medida em que a verdade factual deixa de ser o lastro do “agir em conjunto” (na expressão de Hannah Arendt), ou do “agir conjunto” (na expressão mais sintética e mais própria de seu principal intérprete no Brasil, Celso Lafer).

Enfim, se ingressamos mesmo na era da pós-verdade, ingressamos também na era da pós-política e da pós-imprensa.

E diante disso, francamente, um Trump (ou um Doria) a mais ou a menos é fichinha.

De verdade.

De fato.


...

*Jornalista, é professor da ECA-USP

  

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