Crime e política 14/11/2016
- DENIS LERRER ROSENFIELD*
A política brasileira virou crônica policial. Não há dia sem envolvimento de políticos denunciados e investigados pela Polícia Federal e pelo Ministério Público. Num país aparentemente pobre, milhões e bilhões são desviados de suas finalidades públicas para as mais variadas formas de apropriação pessoal e partidária. O Brasil é rico em corrupção e pobre em medidas sociais.
A Lava Jato tem a grande virtude de estar passando o País a limpo. Sem ela os mais diferentes tipos de crime se estariam desenrolando normalmente, muitas vezes mascarados de políticas sociais, como se tornou usual na forma petista de governar. Sua contribuição à República é inestimável.
Em sua nova etapa, a partir das delações do Grupo Odebrecht, outros crimes e personagens, além dos já existentes, serão acrescentados à longa lista dos já demonstradamente envolvidos. Estes terão provas ainda mais robustas contra si.
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Acrescente-se que o ex-deputado Eduardo Cunha muito provavelmente fará a delação premiada. Se não a fizer, será difícil sua saída da prisão, além de nela entrarem sua mulher e sua filha. Homem meticuloso e organizado, deve ter as provas de tudo o que delatar. E atingirá seus colegas parlamentares e seu próprio partido.
Se o PT, por ter sido o partido do poder, além de arquiteto deste tipo de organização político-criminosa, foi o mais atingido até agora, outros partidos se acrescentarão à lista. PMDB e PSDB são os próximos na fila. O cenário poderá ser de terra arrasada, como se um tsunami estivesse por se abater sobre o País. De fato, as águas estão revoltas, aumentando o seu nível.
Isso significa que ministros, deputados e senadores poderão ser severamente atingidos, mudando as expectativas para 2017 e alterando o cenário para 2018. Imagine-se, por hipótese, que os candidatos atuais sejam alcançados por essas investigações. O País precisaria, então, renovar-se até essa data, sob o risco de abrir as portas para os mais diferentes aventureiros.
O que restará de todo esse cenário?
A classe política será devastada. Talvez, se tudo se confirmar, não sobre pedra sobre pedra. Ora, uma classe política devastada coloca um problema de extrema gravidade no que diz respeito à representação política.
Parlamentares e partidos, por exemplo, cumprem importante papel de representação política. Sem eles a arquitetura do Estado carece de mediação, estabelecendo-se um vácuo na delegação para o exercício do poder. É como um edifício sem suas vigas-mestras. Ou, ainda, como pode um Estado funcionar se os representados não se reconhecem nos seus representantes? Pode-se mesmo, no limite, falar de uma crise institucional.
Surge aqui um problema de monta, agravado pelo fato de alguns juízes, promotores, policiais e formadores de opinião estarem misturando coisas distintas na relação que se está estabelecendo entre crime e política. Há uma confusão, que se está perigosamente generalizando, entre doação empresarial legal, caixa 2 e crime de propina e corrupção. São coisas distintas, que exigem tratamento diferenciado.
Doações eleitorais empresariais eram legais até poucos meses atrás, sendo uma prática corrente por todos reconhecida e aceita. Empresas doavam segundo seus interesses e conveniências sem que esses recursos derivassem necessariamente da corrupção e da propina.
Hoje aparecem retrospectivamente como práticas criminosas, numa espécie de retroatividade da lei, o que é, evidentemente, um absurdo constitucional. Não se pode considerar que um empresário, por ser empresário, seja portador de uma espécie de presunção da culpabilidade, enquanto somos regidos, todos, pela presunção da inocência.
O caixa 2, por sua vez, era crime eleitoral, embora fosse uma prática comumente admitida. Ora, por ser admitida não significa que não deva ser julgada. Contudo o seu julgamento é basicamente afeito à Justiça Eleitoral, com suas penalidades próprias, como multas pecuniárias e perdas de mandato. O caixa 2 não pode ser identificado com corrupção, embora os corruptos também se tenham dele aproveitado.
O crime de corrupção, que deveria ser o foco exclusivo da Lava Jato e de seus desdobramentos, é o crime de propina, numa apropriação de recursos públicos via empreiteiros, políticos e funcionários de estatais, além de seus mais diferentes intermediários.
Trata-se de um crime de extrema gravidade que atinge o âmago mesmo do Estado e deve ser punido exemplarmente. Ele é, porém, essencialmente distinto dos dois outros casos, apesar de eles terem servido de disfarce para atividades criminosas de corrupção.
Ora, se juízes, policiais, promotores e formadores de opinião vierem a identificar esses dois crimes a uma atividade outrora legal, poderemos, aí sim, marchar para uma grave crise institucional, na medida em que ninguém poderá escapar de tal tipo de confusão.
Inocentes serão levados juntamente com criminosos. Crimes eleitorais serão tidos por crimes de propina e corrupção, quando não o são.
Nessas circunstâncias, como poderá o País reconstruir-se? Como poderá enfrentar a derrocada do PIB, o desemprego crescente e a falta de expectativas? Como a crise econômica e social poderá ser superada com a devastação da classe política?
Façamos uma analogia. A Alemanha pós-guerra foi reconstruída pela burocracia estatal e por políticos, muitos dos quais foram nazistas ou simpatizantes dessa forma de eliminação da política e, mesmo, da humanidade. Soube distinguir grandes crimes de crimes menores. Foi o preço que teve de pagar.
A França foi também reconstruída por colaboracionistas e membros e/ou simpatizantes do regime de Vichy. Dois deles se tornaram presidentes, Valéry Giscard d’Estaing e François Mitterrand, este último, paradoxalmente, tendo se tornado um símbolo da esquerda mundial.
Não deverá o País, guardadas as proporções, enfrentar um mesmo tipo de desafio?