Conjunto vazio 22/11/2016
- Ana Carla Abrão Costa*
Alguns meses de experiência na gestão pública são suficientes para aprender a trabalhar na interseção entre o ideal e o politicamente possível, focando na parte do primeiro que esteja contida no segundo.
Alguma frustração acompanha a prática, que envolve abrir mão de algo do ideal para viabilizar o possível.
Melhor focar no mais importante: na margem, avança-se na direção correta.
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Mas estamos vivendo tempos extremos também aí.
A gravidade da situação atual dos Estados sugere que não há interseção óbvia entre o ideal e o politicamente possível.
Já se vão mais de 20 anos desde que uma onda privatizante tomou conta do País.
Parte de um grandioso projeto de estabilização econômica, a redução do Estado foi motivada por um binômio que compunha eficiência com responsabilidade fiscal.
Buscava-se interromper o processo de estagnação e empobrecimento.
A salvação estava em recolocar as finanças públicas em ordem.
A estabilização da moeda era a parte mais visível de um projeto de concertação nacional cuja base era a responsabilidade fiscal.
Naquele momento, a privatização varreu o Brasil.
De empresas federais a bancos estaduais, as máquinas públicas federal e estaduais foram reduzidas, estreitando o espaço para a ineficiência, a má gestão e a corrupção.
Os resultados foram benefícios diretos e indiretos que nem mesmo a pobre crítica ideológica que se seguiu conseguiu anular.
É um meio dejà vu, se pensarmos nos sombrios dias atuais.
A grave crise econômica é uma crise fiscal e, se no nível federal as soluções começam a se desenrolar, nos Estados a situação se agrava a cada dia.
São 27 governadores que, em diferentes estágios, compartilham dos mesmos problemas.
Vários batem às portas de Brasília em busca de fôlego para pagar a próxima folha de servidores, postergando em 30 dias uma agonia que se repete a cada mês, 13 vezes por ano.
Neste final de ano a repatriação foi esse fôlego, ano que vem a nova repatriação será outro.
Mas nada disso muda a realidade.
Enquanto receitas e despesas continuarem em dissonância nos Estados, a crise não cederá e, como mostra o caso agudo do Rio de Janeiro, sinais de distensão social podem adicionar ao crítico quadro um fator ainda mais complexo.
A solução da crise dos entes subnacionais passa por uma drástica redução do Estado.
As máquinas públicas estaduais atingiram tamanho e escopo insustentáveis, com obrigações permanentes e crescentes que não cabem na capacidade de geração de receita.
As despesas com pessoal se tornaram incontroláveis em razão de sucessivos aumentos reais de salários e do crescimento vegetativo da folha – alavancados por uma relação trabalhista desequilibrada, fruto do regime estatutário combinado à leniência da lei de greve –, além de um regime previdenciário que hipoteca gerações à frente.
Por outro lado, a frustração de arrecadação dos últimos anos, quer pelo impacto da crise econômica sobre a atividade, quer pela erosão da base tributária, consequência inegável de mais de uma década de guerra fiscal, nos levou a um descompasso entre despesas e receitas que tem na sua reversão estrutural a única saída para a crise.
O diagnóstico é cristalino e a receita, clara.
Há que enfrentar o problema de frente no nível estadual: um agressivo programa de desmobilização de ativos, que englobe a privatização ou transferência para a gestão pública das inúmeras atividades laterais; redução das despesas de custeio, notadamente as com pessoal; e revisão do modelo previdenciário são o início duro e imprescindível da solução.
Ajustado o nível, há que limitar o crescimento do gasto.
A exemplo da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) federal, também em nível estadual um teto de gastos é necessário.
Mas há que deixar claro na partida: não há justificativas para que minorias organizadas se protejam nos seus privilégios e transfiram a conta do desajuste – que de tão grande é de todos nós – a uma coletividade muda e desmobilizada.
Até porque essa maioria silenciosa vê-se hoje representada pelo vergonhoso número de 12 milhões de brasileiros desempregados.
Além disso, o desajuste é do Estado, não é do Executivo. Deixemos de lado o discurso corporativista que se arvora em afirmar que austeridade e ajuste, se estendidos às carreiras do Judiciário, são atentado à independência dos Poderes ou guerra à Operação Lava Jato.
Pensemos, com a mesma verve pública que nos ferve quando o tema é corrupção, na premência de uma correção de rota que sabemos imprescindível e que sob nenhum argumento justo pode cair sobre os que menos podem só porque os que mais podem têm voz e força.
A solução está, portanto, num novo regime fiscal para os Estados.
E, para chegar a este novo mundo, não pode haver vacas sagradas.
Servidores públicos, Previdência pública, despesas de custeio, empresas e políticas públicas, Poderes independentes e incentivos fiscais.
Todos esses itens terão de compor um projeto de correção de rota.
E a única maneira de impor um custo menor para cada um é corrigir os excessos que sabemos que há em todos.
Essa não é a agenda ideal. Se fosse, incorporaria discussões ainda mais difíceis, como a da estabilidade além das carreiras de Estado, a do piso nacional da educação e a do endurecimento da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Ainda assim, é uma agenda cuja interseção com o politicamente viável parece ser um conjunto vazio.
Mas a gravidade e o caráter sistêmico da crise dos Estados requerem agora o contrário do habitual, ou seja, a distensão do politicamente possível para fazer caber o que é minimamente necessário.
Do contrário, o colapso nos levará a todos e de nada nos adiantará, no futuro, termos sido obedientes aos contornos do politicamente possível de então.